“A nossa luta é política”: depoimento de Noeci Salgado ao Cadernos Ceas
Noeci Ferreira Salgado*
A cultura do café em Vitória da Conquista teve início no ano de 1971, mas só começou a empregar muita mão-de-obra em 1973. No começo, falava-se que representava uma riqueza para a região de Conquista, que o pobre não precisava mais ir para São Paulo. Foi feita grande propaganda pela cidade incentivando-se o pessoal a ir para o café. Muitos venderam sua terra baratinha para ir para o café, mas logo viram que não era nada daquilo que se falava. O pessoal começou a trabalhar e logo começou a sentir os efeitos do café; ficar doente, trabalhando muito e ganhando pouco e veio todo mundo parar na periferia da cidade.
Parando na periferia da cidade, esse pessoal todo se tornou boiafria. Foi aí que o pessoal viu que o café não trouxe nenhuma riqueza para Conquista e, se trouxe, foi para uma minoria. O boiafria teria que acordar às três ou quatro horas da manhã para pegar o caminhão com chuva ou com frio, para voltar à noite em cima de carroças puxadas por tratores, caminhões sem cobertura, junto com as ferramentas de trabalho. Nessas viagens iam também as crianças e continuam indo ainda.
Mais ou menos em 1975, os trabalhadores começaram a se reunir e a analisar as vantagens e desvantagens do trabalho com o café e vendo a doença, a exploração, o desrespeito aos direitos dos trabalhadores, sentiram a necessidade de fazer alguma coisa. Foi aí que, no fim de 1979, surgiu a ideia de fazer uma grande assembleia para tentar mudar alguma coisa. Inicialmente formamos uma comissão para continuar as reuniões com os companheiros, levantar as reivindicações e encaminhar todos os passos necessários.
Não pensávamos, no início, em uma Assembleia com Sindicato e tudo mais. Queríamos, de alguma forma, demonstrar que os trabalhadores estavam sendo explorados. Depois de muitas reuniões e encontros, acabamos descobrindo que a gente poderia conseguir muito mais fazendo uma Assembleia para um contrato coletivo. Porque além de se poder demonstrar a nossa força e a nossa organização ficaríamos com uma arma na mão para exigir os nossos direitos.
O contrato coletivo de Trabalho nos obrigaria a continuarmos a nossa luta. Começamos levantando as principais reivindicações, tais como: um salário base, que o salário da mulher fosse igual ao do homem, que a criança tivesse também assegurado o seu salário e a sua escolarização, a proteção e a segurança mínima ao trabalho contra o veneno e os adubos, lugar adequado para o pernoite (até poleiros de galinha são utilizados para dormida dos trabalhadores), transporte digno, assinatura da carteira de trabalho e pagamento de todos os direitos trabalhistas que até hoje não recebemos.
Nossa luta era igual à luta dos operários de São Paulo e outros lugares; porque eles estão lutando por um salário, nós também estamos lutando por um salário; eles todos anos renovam sua luta e nós também daqui para frente iremos lutar todos os anos; eles estão lutando pelo fim do Fundo de Garantia e nós não temos e não queremos aceitar que essa lei se aplique ao trabalhador rural, porque na verdade ela só veio prejudicar ao trabalhador. Lá são os trabalhadores que estão levando adiante a luta, embora contem também com o apoio de outros setores, aqui também somos nós, os trabalhadores do café, que lutamos e procuramos também contar com a ajuda de outros setores. Lá os operários não contam mais com o Sindicato porque o Governo interveio, mas aqui também no dia em que for preciso oferecer uma resistência eles também vão intervir, como já o fizeram.
A nossa luta é uma luta política porque ela visa a organização do trabalhador. O trabalhador deve pensar no seu futuro político e nada melhor do que que pensar organizado, porque ele estando organizado pode escolher melhor quem possa representar os trabalhadores. O movimento dos trabalhadores também é político porque ninguém está de acordo com as decisões do Governo e por isso estamos lutando contra esse regime que aí está, na medida em que lutamos contra a fome, contra o desemprego e a miséria. Lutar contra essas coisas já é lutar contra o regime que procura cada vez mais deixar os pobres sem terra para dar a terra às grandes empresas multinacionais. No Brasil tem uma lei que não permite a só um cidadão ter mais de 500ha de terra, mas alguns têm mais de um milhão de hectares de terras e tudo isso é feito com o apoio do Governo. Assim, enquanto um punhado de homens tem milhões de hectares de terras, existem milhões de trabalhadores com vontade de produzir alimentos básicos para a população e não dispõem nem dum palmo de terra.
A nossa luta também é política porque no Brasil de hoje têm terra e ganham muito dinheiro somente os ricos, que para se manterem assim precisam de muitos miseráveis para explorar. Quando lutamos por melhores salários e melhores condições de vida estamos lutando contra esse poder. Achamos também que mesmo com melhores salários e melhores condições de vida ainda não estaremos, nós os trabalhadores, seguros, enquanto as terras não voltarem para as mãos dos que nelas trabalham e estão dispostos a produzir os alimentos básicos para a população.
Achamos que o progresso não se faz apenas com indústrias de automóveis e outras coisas semelhantes, mas com a produção de alimentos, o que não é possível nessa situação em que estamos vivendo. Assim, nossa luta é também política porque é contrária a esse desenvolvimento voltado apenas para a indústria e a exportação dos produtos agrícolas. Não acreditamos que lutando apenas por salários a situação mude, porque os patrões podem pagar salários, mas a situação não muda enquanto não houver uma divisão de rendas e as terras ficarem nas mãos de poucos.
O Sindicato hoje é o único instrumento praticamente, onde os trabalhadores encontram um meio para reivindicar seus direitos; só não está melhor porque ainda está atrelado ao Governo, ao Ministério do Trabalho. O Sindicato só vai ter mais força no dia em que a gente lutar e conseguir tirar o sindicato da mão do governo para ficar apenas nas mãos dos trabalhadores. O Sindicato, além de estar atrelado ao Governo, ainda consegue ser pior porque está nas mãos dos pelegos.
O sindicato ainda não é muito conhecido pelos trabalhadores porque não tem um trabalho de base, porque a prática sindical dos pelegos é só de assistência médica. Para desalojar os pelegos do Sindicato não basta apenas organizar chapas de oposição para concorrer às eleições; é preciso que se faça um intenso trabalho de organização dos trabalhadores não apenas com vistas às eleições, mas deve ser um trabalho por melhores condições de trabalho e por melhores salários, por lutas onde os pelegos vão ao longo do tempo ficando mais desacreditados junto aos trabalhadores, e assim a necessidade de mudar a direção sindical vai sendo sentida por todos os trabalhadores ou pelo menos pela maioria deles.
Outro instrumento que não deve ser esquecido é o partido. Tem que ter um partido só dos trabalhadores, mas com trabalho de base também. Agora mesmo estão sendo formados novos partidos, mas nenhum está fazendo trabalho de base; se preocupam mais com a propaganda e a propaganda só não leva à organização, no máximo leva ao fortalecimento dos partidos, mas sem contribuir para uma verdadeira organização popular. Outra preocupação dos partidos é ganhar adeptos e estes são frutos da propaganda ou pela troca de favores, isto é, as adesões não se dão pela formação de uma consciência. Nesse partido de trabalhadores não deveria ter distinção, porque o problema de um trabalhador é o problema de todos. O problema do camponês é semelhante ao do metalúrgico e de outros, inclusive intelectuais.
A nossa luta é política. Cadernos do CEAS, 70, nov./dez. 1980, p. 56-58. Depoimento de NOECI FERREIRA SALGADO, trabalhador rural.