Um inventário infame de feridas profundas

Relatos mostram que masculinidade e institucionalidade reproduzem ignorância, que gera preconceito, que gera violência; e tudo isto é constrangedor
Há tempos temos observado atitudes extremas de intolerância neste Território de Identidade do Planalto da Conquista, cujo pólo de referência social, política e econômica é a vigésima segunda cidade mais violenta do mundo, segundo as Nações Unidas. Embora o ranking se refira ao conceito restrito de violência enquanto contagem de homicídios por cem mil habitantes, vamos abordar as diversas formas de violências que geram os homicídios. A violência por ódio ou medo, seja através de palavras, seja de atitudes, até as mais extremas. E vamos observar como sempre há uma representação da masculinidade nas violências.
Racismos, misoginias, fobias variadas que se manifestam enquanto ódio ao outro. O preconceito, que é uma defesa natural do intelecto, um aviso para que busquemos o entendimento, é extremado e torna-se um defeito grave. Um empilhado de ódios, frustrações e aberrações, um verdadeiro inferno. Esta negação do outro muitas vezes violenta é também a negação de princípios básicos de civilidade, cidadania, educação, uma negação que se impõe pela força. Esse tipo de violência se dá pela ignorância, que gera medo nas pessoas, que, diante dele, poderão reagir de maneira covarde ou corajosa, altruísta ou egoísta.
Como o caso do porteiro que não permite à moradora negra do condomínio entrar por ela ser negra. Ou a advogada negra agredida pela vizinha que ocupava sua vaga no estacionamento. A reação foi pela advogada ter reclamado sua própria vaga. Houve xingamentos e violência física. Coisas do tipo que personagens de novela e eleitores da extrema direita costumam fazer contra negros, principalmente se forem mulheres e estas estiverem com a razão. É uma pletora de exposição das próprias vísceras.
Em 2016 Américo assassinou uma jovem grávida e o bebê, está foragido desde então
Quando um desses médicos abusadores foi denunciado recentemente (outro tipo de violência contra a mulher que tem se tornado comum), sua advogada, para defender o cliente, expôs a vida sexual da vítima da violência médica, como se seus hábitos fossem uma razão que autorizassem o médico a violentar sua paciente. Sim, misoginia praticada por uma mulher contra outra. Foram diversos os casos de denúncias desse tipo de violência contra a mulher. Porém, muitas denúncias foram feitas de modo ilegal, utilizando-se de um perfil de rede social para expor os criminosos, ao invés de formalizadas de acordo com as orientações legais. Obviamente, o perfil foi cancelado. Não se tem notícias dos desfechos desses crimes, estatisticamente sabe-se que são processos constrangedores e dolorosos para as vítimas.
Uma moça de 16 anos, negra, grávida, é encontrada morta num barril no bairro Conveima. Ninguém ouviu falar disso, aconteceu há poucos meses e foi denunciado na Câmara pelo vereador Ricardo Babão. Mas todos conhecem e fazem questão de indignar-se com as violências contra a mulher em bairros mais nobres. Mulheres de pele mais clara. E homens cuja maioria não está presa. Uma delegada se referiu a três assassinos de uma jovem como “rapazes”. São da mesma classe social e possuem relações sociais, ligações sociais ou identificações comuns.
Em cidade vizinha, menino trans de 12 anos tem negado direito ao nome social em escola. O direito, estendido a menores desde 2016, foi solicitado pela mãe. A resposta da escola foi que precisa da autorização da prefeitura, não se sabe se por cinismo ou ignorância. Vereadores foram pressionados a não votar projeto de lei local. Um pastor mobilizou a comunidade, que foi ao parlamento pressionar os edis a não votarem no que o dito religioso chamou de aberração. Um vereador cita a bíblia e diz que vai votar contra porque sua ideologia não pode ser desrespeitada. A casa da criança foi apedrejada, a polícia não age.
A acusação do pastor David foi noticiada pela mídia estadual e chamada de bruxaria eleitoral, mídia local não informou o nome do pastor na época
Aqui, o aspecto da religião estimulando a violência, aproveitando-se da ignorância e suscitando comportamentos extremos. Conquista, 2020. O pastor David Silva diz a fiéis que candidato a prefeito e deputado, mais o governador e um senador, sacrificaram animais em rituais de magia negra próximo à estrada da Barra. A imprensa mais
Na época, o pastor foi desmentido pela imprensa, mas pessoas da religião do pastor de falso testemunho declararam o voto orientados pela mentiraséria desmentiu o pastor, mas o objetivo da fala era político e eleitoral. Muitos fiéis ao pastor de falso testemunho declararam ter seguido as orientações nas urnas. Em 2021 ele foi condenado a se desmentir publicamente. De fato, há mais tempo, houve sacrifício de animais mamíferos placentários na estrada da Barra, no caso, na ocasião, humanos mesmo. Eram pastores matando-se uns aos outros, disputando fiéis e pontos de oração como traficantes se matam por clientelas e biqueiras.
Há pouco mais de dois meses, a Polícia Militar, que também (é importante lembrar) faz trabalhos de proteção, acolhimento e cuidados com a população, subiu o bairro das Pedrinhas às 11 da manhã, meteu o pé numa porta, invadiu a casa, foi até um quarto onde dormia um homem de 23 anos e o assassinou a tiros. No boletim da ocorrência, uma referência a “troca de tiros”. Soube disso porque ia realizar uma atividade no local naquele dia, quando me foi explicado que deveria ser adiada porque havia uma mãe chorando, e quando uma mãe ali sofre, todas sofrem. Este fato é corriqueiro no local. Embora os moradores sejam descendentes de pessoas que construíram as casas de gerações passadas, cuidaram de seus filhos, prepararam seu alimento e fizeram o asseio e limpeza dos seus lares, hoje, para conseguir um emprego na cidade, precisam mentir sobre o lugar onde moram. A representação do estigma da ignorância: se a cidade soubesse a dívida que tem com as Pedrinhas, a realidade seria outra.
Polícia militar em atividade para combate à pobreza
Entre 1997 e 2000 Conquista teve transformações sociais importantes. Havia em 1996 centenas de crianças e adolescentes em situação de rua. Essas crianças assustavam as pessoas. Como em episódio narrado nos anos de 1950 pelo médico e historiador Leôncio Basbaum (1907-1969) que passou por aqui e narrou o assédio ostensivo dos meninos de rua a pedir esmolas. Porém, no apagar das luzes daquele século, após cinquenta anos de ausência, algumas crianças e adolescentes tinham armas à mão, e não pediam mais. No ano seguinte, 1997, o Município organizou um programa que iniciou atendendo a algumas dezenas de meninas e meninos numa casa de acolhimento noturno. O local foi no centro da cidade, mas moradores e comerciantes não gostaram, sentiram medo. Estumaram cães contra os menores e tiveram o reforço de um locutor de rádio que afirmou ser um perigo aqueles marginais ali. Não obstante parte da sociedade ter sido contra, o programa tornou-se uma referência nacional em atenção à infância e adolescência, e, 10 anos depois, atendia a cerca de 500 famílias com atividades e formação em tempo integral e bolsa para as mães das famílias. Também, na mesma época, foi organizado um grupo de catadores para coleta do lixo reciclável e, com carroças, iam até mesmo onde os caminhões não podiam ir. Porém uma reportagem na tv Sudoeste mostrou os moradores de bairros de classe média-alta reclamando do suposto perigo que aquelas pessoas ofereciam circulando por ali.
As manifestações racistas de Vereadores, do tipo “cotistas são semianalfabetos” ou “não existe racismo” e ainda “reclamam que a polícia mata negros mas ninguém vê quando um negro mata policia”, e outras aberrações, mostram entendimentos de legisladores e eleitores. O poder executivo, por sua vez, faz cumprir a lei derrubando casas, deixando famílias pobres sem moradia. E não há como não comparar com passado recente, quando bairros e loteamentos foram criados para remanejar pessoas morando em lugares de condições subnormais e irregulares. E tem, entre tantas outras histórias de opressão e covardia contra os mais pobres, a da senhora de 78 anos que teve suas memórias soterradas por um trator contratado por um homem de posses que estava com raiva do neto dela e mandou derrubar o barraco onde ela morava.
Sim, a cidade é racista, na mesma medida do país. Sempre foi. Há um censo do final do século XIX em que apenas 8% da população local se declara negra. Mais de cem anos depois, em 2011, membros de uma comunidade pedem ajuda do poder público para convencer o restante dos moradores a aceitarem a certificação de comunidade remanescente de quilombo. Os que recusavam, faziam-no por auto preconceito: “não, isso de ser carambola é coisa de preto e pobre, e nós não quer ser”. O constrangimento de ser um estigma, a ignorância sobre si próprio, a baixa autoestima pressionada por séculos de mentiras acerca de pessoas por conta de perfis de características. e o histórico de violência e humilhação sofrido geração após geração.
A cidade é homofóbica, mata perfis de característica de orientação sexual diferenciada da dita heteronormatividade. Mata por ódio, mata por medo. Até mesmo a institucionalidade, que deveria cuidar de explicar e instruir sobre os preconceitos, evitar que se tornem violências graves, oferecer segurança e qualidade de vida, nem sempre o faz. Embora haja órgão específico, emite equívocos de método e até mesmo expressões inconscientes de homofobia.
Sim, a cidade é misógina. Mata e estupra mulheres, abusa, violenta, usurpa. Até mesmo uma policial militar, na solidão de uma cabine de posto policial na periferia erma, no meio da madrugada, é vítima de estupro durante plantão. Uma história mal contada que teve muitas ajudas para acontecer. A violência contra a mulher dentro das polícias não é caso isolado. Na polícia civil há um processo em curso por violência sexual e grave assédio moral de servidor homem contra colega mulher. A vítima, durante o processo, sofre mais assédios e tentativas de desqualificação do seu caráter e integridade.
Sashira, assassinada em 2021 por colegas de faculdade
Toda esta violência fruto de ignorância é um reflexo do país, que se torna cada vez mais intolerante. Em 2021, houve um estupro a cada 10 minutos e um feminicídio a cada 7 horas no Brasil. No mesmo ano, foram assassinadas 320 pessoas LGBTQIA +. Mortes de negros pela polícia também aumentaram, e ganharam repercussão. Sim, as violências das discriminações são institucionais também. Envolvem órgãos de segurança pública, legislativo, executivo, judiciário e toda a sociedade. E este microcosmo da região de Vitória da Conquista é um exemplo do estado geral de coisas em âmbito nacional.
As pessoas, com o tempo, estão se sentindo mais à vontade para expressar o que chamam de “opiniões”, que são, na verdade, manifestações de frustração e desejo de cometer violência por medo ou por ódio. Assistimos recentemente a um parlamentar com mentalidade absolutamente infantil declarar que estava na Ucrânia, não em missão humanitária, mas para conseguir sexo fácil com mulheres pobres. De onde vem todo este machismo que opera nas instituições e as cega?
Esta escalada é antiga. O poder que os homens têm nas mãos se mostra frágil à medida que os paradigmas vão se atualizando. É constrangedor, e os homens, detentores dos lugares de poder, se mostram criaturas frágeis, covardes, incapazes. E quanto mais isto se evidencia, mais aumenta a violência e os meios para se cometê-la. E a certeza sobre tudo, inclusive a impunidade. Como no caso dos meganhas federais que mataram por asfixia uma pessoa em Sergipe, numa câmara de gás improvisada no fundo da viatura, diante das câmeras. Mataram pela infração de não usar capacete.
Matar passa a ser uma alternativa. Um modo de ostentar a força e um suposto poder de domínio, como fazem os animais. Desde que o ex-juiz e autor da maior fraude processual da história do Brasil insistiu no tal “excludente de ilicitude”, para que a polícia pudesse matar com mais liberdade e menos remorso, aumentou consideravelmente o número de pessoas sendo executadas em via pública por agentes de segurança. Geralmente por asfixia, mas também por balas, sejam perdidas ou direcionadas para negros que portem qualquer coisa que se pareça uma arma aos olhos de quem vive no universo das armas e da violência. Um guarda-chuva, por exemplo. Também a população assistiu jornalistas formadores de opinião incentivando o linchamento, como a moça com nome de princesa persa que fez campanha para o golpe de 2016, ajudou a eleger o presidente e depois se arrependeu.
Daí surge a notícia de que tortura com morte é ensinada nos cursos preparatórios da Polícia Rodoviária Federal. Surgem vídeos de membros da corporação ensinando requintes de crueldade com o cinismo de uma criança perversa de 11 anos dando indícios de que vai ter problemas para articular cognição e afetos. E não é apenas um. É costume, outros vídeos apareceram. Num desses documentos, um policial fala sobre quão bom é ser PM, pelo poder que tem em bater num “bando de pobres pretos desdentados e favelados torcedores do Flamengo”, autorizado pelo superior.
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Toda esta violência vem de um desejo. O desejo daqueles que não suportam mais o peso e as responsabilidades do mundo adulto, em que se tem de responder sobre o que se faz ou diz. Isto se torna, aos olhos deles e em sua posição, uma violência insuportável. São representados pelo homem que quer substituir sua responsabilidade e vida ordinária, sua incapacidade de lidar com a própria frustração, sua covardia, pelo direito de ser violento. Vítima da própria impotência, reclama o direito de espancar o mais frágil fisicamente, mas que o assusta por ser infinitamente superior em inteligência e maturidade. Reclama o direito de andar armado, por ser vítima de uma sociedade cruel, de dizer o que pensa e compreender isto como opinião, mesmo que não haja sentido ou contexto, mesmo que fira ou minta. Ou seja, é um desejo do que se entende por liberdade, pensar que se pode exercer como quiser a própria violência.