A realidade do futebol brasileiro

Carlos González – jornalista
A explicação, no meu modesto conhecimento, para a queda do Flamengo, na verdade, do futebol sul-americano, para o Al Hilal, da Arábia Saudita, não está no noticiário esportivo da impensa. O esporte mais popular do continente, como todos os produtos destinados ao lazer do povo, vem sofrendo há décadas com a instabilidade de uma economia mal administrada pelos governantes.
Brasil e Argentina, os dois maiores centros esportivos da América do Sul, passaram há algum tempo a ver o futebol como uma indústria em processo de falência, com a prerrogativa de se desfazer de parte do seu patrimônio, no caso, seus atletas, negociando-os com o mercado externo, em troca de muitos euros e dólares. Outros esportes, como o vôlei, o futsal, o handebol e o basquete, também foram atraídos pelo tilintar das moedas estrangeiras. Adotam, como se vê, a prática nociva da nossa agroindústria.
Estudos feitos por uma empresa de consultoria revelam que os 20 clubes da série “A” em 2022 acumulavam uma dívida de R$ 11,9 bilhões, com Atlético Mineiro e Corínthians no topo da lista. Esse passivo foi reduzido em R$ 1, 4 bilhão com a venda de jogadores para clubes estrangeiros.
Nos últimos anos, clubes e bilionários chineses, europeus e árabes, inclusive Ronaldo Fenômeno, têm investido na compra de equipes brasileiras. Trata-se de uma fórmula para alivia o “sufoco” financeiro dos clubes. A direção do Bahia, com o apoio dos seus conselheiros, foi seduzida pelos euros oferecidos pelo Manchester City. Ainda é cedo para avaliar se o Tricolor fez um bom negócio, mas é inegável que o desempenho técnico do time em campo não tem agradado à torcida.
O leitor talvez não tenha percebido, mas o futebol praticado entre jovens com menos de 20 anos, os antigos juvenis, é muito mais agradável de acompanhar – assista esta semana pela TV o Campeonato Sul-Americano Sub 20, disputado na Colômbia – do que uma partida, por exemplo, do Campeonato Baiano.
O empenho é uma das qualidades de um garoto de família pobre, morador da favela ou da periferia das cidades, porque o sonho dele é vestir a camisa de um clube europeu. Ele pode está sendo observado naquele momento por um dos muitos olheiros do Real Madri que atuam em diferentes cidades do Brasil e da Argentina.
A Copa São Paulo de Futebol Júnior, promovida há 53 anos pela prefeitura paulistana se transforma na maior vitrine do futebol de base, atraindo observadores de clubes europeus. Alguns dos 128 participantes da Copinha recebem a ajuda financeira de empresas, que buscam o lucro com a venda de um ou até mais garotos.
Há, inclusive, exemplos no futebol baiano. O Doce Mel, que disputa a 1ª Divisão do Estadual e foi um dos times da Copinha 2023, é mantido por uma fábrica de polpas de frutas, com sede em Iguaí e mais de 30 filiais no interior baiano; o Canaã, da 2ª Divisão, participante da Copinha no ano passado, é bancado pela Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), em Gandu. A rede de farmácias Pague Menos mantém no Ceará um projeto voltado para as divisões de base.
Uma das prioridades do Barcelona é “fabricar” talentos, incluindo-os, desde a mais tenra idade, num projeto escolar e esportivo, destinado aos filhos de jogadores e funcionários do clube. Thiago, o primogênito de Messi, foi “contratado” aos 4 anos de idade; Ronaldinho Gaúcho mandou recentemente seu filho João para Barcelona.
Os jogadores que não dispõem de qualificação técnica e nem de um empresário com trânsito no mundo do futebol, disputam no momento desinteressantes campeonatos estaduais, que já levaram ao antigo estádio da Fonte Nova 97.240 pagantes (Ba-Vi de 7 de agosto de 94). Depois da Copa do Mundo de 2014, no Brasil, os estádios ou arenas encolheram, o ingresso aumentou e o torcedor preferiu ficar em casa.
Dados divulgados pela CBF mostram que 55% (49,5 mil) dos jogadores profissionais que atuam no Brasil ganham um salário mínimo. Para a maioria deles, o calendário anual organizado pela Confederação é desumano com aqueles que têm seu período de atividade limitado aos três meses dos campeonatos estaduais, caso os seus clubes não estejam inscritos na Libertadores, Sul-Americano, Copa do Brasil e nas quatro séries do Brasileirão.
Temos uma amostra em casa. Os profissionais – o sub 20 disputou a Copinha deste ano, passando da fase de grupos – do Vitória da Conquista pisou num gramado pela última vez em 16 de março de 2022, já rebaixado para a série B do Baianão, cujo início este ano ainda não foi anunciado pela FBF. O “Bode” está desaparecido, ocorrência que não causa a menor preocupação da Prefeitura local, como se o esporte não fizesse parte de uma de suas secretarias, assim como dos seus torcedores, mais flamenguistas do que conquistenses. Sua página na internet está desatualizada desde janeiro de 2022.
As melhores equipes representativas do Brasil em Copas do Mundo foram, sem dúvida, as de 59, 70 e 82, formadas, exclusivamente, com jogadores que atuavam em casa, que não possuíam mansões e nem pagavam milhares de euros por um bife folheado a ouro. O mesmo se pode dizer da Argentina com relação às seleções de 78 e 86. No último Mundial, os dois países foram representados por “estrangeiros”. Nossos “hermanos” tiveram o privilégio de contar com a genialidade de Messi e levantaram a taça.
Os números não mentem: em Copas do Mundo, a Europa tem 12 títulos e a América do Sul, 10. Em Mundiais de Clubes – Europa 34; América do Sul 23. A partir do quarto lugar conquistado pelo Marrocos na Copa do Catar e a eliminação do Flamengo pelo Al Hilal (cada jogador recebeu um prêmio equivalente a R$694 mil), o mundo deve olhar com mais atenção para o futebol praticado pelos árabes.