Intolerância democrática

Carlos González – jornalista
Pesquisa Datafolha mostra que 93% dos brasileiros condenam os atos antidemocráticos promovidos por bolsonaristas no último dia 8, em Brasília; outra consulta popular revela que mais de 50% dos evangélicos aprovam a invasão, acompanhada de destruição, aos prédios do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal (STF) e ao Palácio do Planalto.
Essa desproporção entre as duas pesquisas afasta qualquer dúvida que ainda havia sobre os autores dos atos de intolerância religiosa, praticados contra a Igreja Católica e as religiões de raízes africanas.
Denúncias às autoridades policiais têm sido feitas em todo o país, inclusive em Vitória da Conquista, relatando destruição de imagens sacras seculares e atos de vandalismo nos terreiros de candomblé. .A interrupção de uma missa solene em Aparecida, no Dia da Padroeira, por bolsonaristas – o ex-presidente Jair Bolsonaro estava entre o fieis – embriagados, foi condenada pelos católicos.
Os evangélicos, extremamente dedicados aos seus superiores nos templos da Assembleia de Deus e Igreja Universal do Reino de Deus, alimentam há décadas a ideia de tomar o poder no Brasil. O “enviado de Deus” chegou em 2018, trazendo na bagagem a negação à ditadura militar (1964-1985) e uma expulsão do Exército por indisciplina.
Nos últimos quatro anos, Jair Bolsonaro presenteou regiamente aquelas pessoas que lhe colocaram à frente do Executivo, nomeando-os para cargos nos primeiro e segundo escalões do governo, – dois devotados ministros foram nomeados para o STF -, a maioria deles sem nenhum preparo para a função que exerciam.
A derrota de Bolsonaro nas urnas em outubro passado não estava na imaginação de bispos, pastores e apóstolos, que pretendiam desfrutar dos favores do governo por tempo indeterminado, colocando em prática as normas da doutrina fundamentalista. Maus perdedores, divulgaram pelas redes sociais a idéia de que houve fraude nas eleições presidenciais, e convocaram seus apoiadores para uma jornada antidemocrática, na certeza de que as Forças Armadas acreditariam nas suas mentiras.
Não há mais dúvida da participação dos evangélicos na montagem e manutenção dos acampamentos em frente aos quartéis do Exército, contrariando a Bíblia, que faz opção pelas armas espirituais (orações, jejum e a palavra de Deus). Os tresloucados imaginavam que as muralhas da democracia, representada nas casas dos Três Poderes, cairiam facilmente, graças ao poder divino, como caíram em 1315 aC as muralhas de Jericó.
O ambulante José (nome fictício) aproveitava a movimentação dos golpistas em frente ao QG do Exército, em Salvador, para vender picolé, quando recebeu uma oferta de R$ 400 para fazer “turismo” em Brasília. Nem pensou. Embarcou num ônibus que lhe deixou num acampamento a 8 kms da Praça dos Três Poderes.
José deixou o acampamento na tarde do dia 8 como um dos milhares de autodeclarados “patriotas” de uma marcha pacífica, na opinião do governo do Distrito Federal. Finalmente ia conhecer as casas da democracia do seu país. Mas o que ele presenciou foram atos de terrorismo, com a depredação do patrimônio público e o confronto violento entre golpistas e policiais.
No calor das batalhas, um policial e sua montaria foram confundidos com os comunistas que, segundo os golpistas, se infiltraram na marcha. Agredidos, o soldado Leles e o cavalo “Drácula” foram feridos por objetos cortantes. O PMDF agradeceu nas redes sociais aos que se preocuparam com ele, escrevendo: “O Senhor dos exércitos nos guardou. Bendito seja o Senhor, minha rocha, que ensinou minhas mãos para a peleja e os meus dedos para a guerra”.
Com exceção da intolerável música sertaneja, os neonazistas têm aversão a tudo o que diz respeito à cultura, contrariando seu doutrinador, Adolf Hitler, que se apoderava das obras de arte dos países conquistados, além de ser um admirador da música clássica, principalmente das peças do compositor alemão Richard Wagner.
Os brasileiros foram testemunhas da destruição do nosso patrimônio cultural na invasão ao Planalto. Eu mesmo fui vítima desse retrocesso cultural: uma réplica do quadro “Guernica”, adquirido no Museu do Prado, em Madri, foi destruído por uma fanática, sob a justificativa de que eram demônios as figuras criadas pelo famoso pintor espanhol Pablo Picasso.
Os milhares de bolsonaristas presos em Brasília não significam que estamos num clima de paz. Os inimigos do Estado Democrático de Direito não vão desistir facilmente de tomar o poder, mesmo com a condenação das maiores lideranças mundiais e da maioria do povo brasileiro. Não vamos esquecer que a partir de fevereiro o Congresso Nacional receberá algumas das figuras mais reprováveis do condenável bolsonarismo.