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Conseguirá a esquerda brasileira vencer o seu desafio histórico? 1
A política e o pensamento democrático e socialista no Brasil não podem prescindir de buscar as suas raízes históricas e as formas de exploração das classes dominantes sobre as classes subalternas. O conhecimento mais próximo possível da realidade deste processo histórico é indispensável para entender e mudar o presente. A história brasileira é marcada pelo colonialismo português e a escravização de indígenas e negros por mais de trezentos anos. A ocupação colonial portuguesa iniciou um processo de relações de produção que conserva a mesma matriz por séculos. Sempre tentando a obtenção do maior lucro possível no menor tempo, pouco interesse a ocupação e fixação na terra despertou nos primórdios da colonização. As dificuldades de descobrir, extrair e lavrar ouro e pedras preciosas derrubou a ilusão do mítico Eldorado de que essas riquezas estavam jogadas no solo esperando apenas que mãos ávidas as recolhessem. Mas, as árvores de pau-brasil e a mão de obra estavam à disposição, bastando que os invasores escravizassem os indígenas obrigando-os a trabalharem na extração e beneficiamento primário do pau-brasil para ser exportado e vendido para a rica nobreza europeia tingir suas roupas de cores mais vivas. Lucro fácil e rápido. Mas, a devastação de praticamente todo litoral, a constantes rebeliões e as dificuldades de adaptação da vida nômade indígena ao sedentarismo exigido pelas de novas formas de produção provocaram a decadência do extrativismo do pau-brasil e o início da escravização de povos negros, sequestrados na África e trazidos acorrentados para o Brasil. Basicamente tal é a origem da infraestrutura socioeconômica brasileira que, basicamente, se conserva, sob novas formas, até os dias atuais: exploração de mão-de-obra escravizada ou barata e a dilapidação das nossas riquezas naturais para venda e consumo no exterior, principalmente aos países mais desenvolvidos. Os ciclos econômicos posteriores não fugiram da matriz original: açúcar para adoçar o refinado paladar dos ricos europeus e a mineração que fornecia principalmente ouro, verdadeiro fetiche monetário, que facilitava mover as relações mercantis que fortaleciam a expansão comercial da Europa. As atividades agrícolas de produção de algodão, café e o extrativismo da borracha, mesmo sob novas formas de produtividade e exploração, seguiam o modelo de atendimento dos interesses externos que encontravam no Brasil parceiros menores sedentos em participar de parte dos lucros captados das atividades de exploração das classes e grupos escravizados e, posteriormente, de seus descendentes aparentemente livres, mas ainda submetidos às formas degradantes de exploração já que despossuídas de meios próprios de sobrevivência e presos às condições indignas do baixo preço do salário. À esta população trabalhadora somaram-se levas de milhões de imigrantes, principalmente a partir de meados do século XIX.
Evidentemente, exploração tão cruel provocou revoltas e rebeliões populares dos mais variados tipos e objetivos. Nativistas contra o colonialismo português, negros, escravizados ou libertos, e brancos intelectuais organizaram-se contra a escravidão, contra a propriedade latifundiária e constantemente surgiam muitas manifestações populares aparentemente desligadas de suas verdadeiras causas sociais, como o fanatismo de Antônio Conselheiro e o cangaço de Lampião. Infelizmente, todas foram derrotadas e massacradas não alcançando seu objetivo maior, permitindo que as mudanças “lentas, graduais e seguras” ocorressem sob a hegemonia das classes dominantes. Também em todas, a repressão desencadeada pelo Estado foi dura e cruel. Seus líderes e seguidores mais ativos foram enforcados, decapitados, esquartejados e seus corpos expostos publicamente, como exemplos.
Esta formação econômica, de alta intensidade de exploração, conserva a mesmo modelo original adaptando-se continuamente ao desenvolvimento das forças produtivas e às mudanças que ocorrem no mundo do trabalho. A concepção de que o Brasil era um país essencialmente agrícola, perdeu força. A diminuição da pressão econômica externa provocada pela eclosão da Primeira Guerra Mundial, a crise capitalista de 1929-1934, a Segunda Guerra Mundial, o aumento populacional e o surgimento de uma população urbana possibilitaram a formação de um mercado interno consumidor, que apesar de restrito aos setores mais bem situados economicamente, incentivaram o desenvolvimento industrial e o aumento numérico dos trabalhadores urbanos. As relações agrárias mantiveram na essência o mesmo conteúdo: gigantescas propriedades rurais de monocultura, uso abusivo e criminoso de agrotóxicos, exploração desumana da mão de obra e a produção transformada em commodities para venda e consumo no exterior auferindo altos lucros em dólar.
A entrada do Brasil no período republicano/moderno se realizou sob forte influência dos militares. Desde a guerra sangrenta contra o Paraguai, a proclamação da República, o tenentismo, a revolução de 1930, a contra-revolução de l932, a rebelião comunista de 1935, o golpe getulista do Estado Novo, a participação brasileira na II Guerra Mundial, a redemocratização de 1945, a tentativa de golpe em 1954, a garantia de posse de JK, a posse negociada de João Goulart, o golpe militar de 1964, a longa transição democrática limitada e negociada até o surgimento do bolsonarismo como expressão grotesca da insatisfação de alguns redutos militares, são fatos marcantes que mostram a enorme influência política dos militares na história brasileira. O militarismo no Brasil é real e sua instituição deve ser tratada politicamente, mesmo, que, não como partido político. Ao seu lado, podem ser contadas a Polícia Federal, as polícias militares estaduais e civis, as empresas privadas de segurança e órgãos de informação e inteligência. Proporcionalmente o aparelho repressivo brasileiro é muito poderoso e eficiente e nunca deixou de usar a violência como arma de intimidação. Ao longo das lutas de classes no processo de formação da sociedade brasileira surgirem períodos de estabilidade social, ação e repressão mais amenas contrastando com momentos de aguçamento das tensões sociais reprimidas com violência. Com o crescimento da indústria e a urbanização acelerada das maiores cidades, a classe operária surge no cenário político como ator que também procura o seu espaço. No início do século XX o anarquismo, principalmente formado por imigrantes europeus, liderou importantes greves e manifestações, pequenos núcleos de mulheres chegaram a levantar bandeiras feministas e no campo estouravam movimentos camponeses com fortes inclinações religiosas. Em 1922, pequeno grupo de intelectuais, alguns operários e artesãos fundavam o incipiente Partido Comunista do Brasil/PCB, e, hoje, ainda vivendo sob diversas denominações e siglas. Neste mesmo ano, intelectuais de vanguarda realizavam a Semana da Arte Moderna em São Paulo. Vale notar que esses dois acontecimentos históricos e culturais se originaram de forte influência europeia: A intelectualidade mais avançada da Europa e a vitória da revolução proletária na Rússia.
Apesar da exploração interna e externa que marcou a história brasileira, o país transformou-se significativamente após a Segunda Guerra Mundial. Por meio de um rápido processo de modernização conservadora a monocultura diversificou-se, expandiu-se as fronteiras agrícolas para o centro oeste e o norte, difundiu-se o uso abusivo de agrotóxicos, áreas virgens e terras indígenas foram ocupadas e o Brasil transformou-se em um dos maiores produtores de commodities agrícolas e minerais do mundo. A indústria abrange praticamente todos os ramos de produção, inclusive o armamentista. As privatizações das empresas públicas as integram e subordinam cada vez mais ao capital financeiro e industrial internacional. O setor de serviços, inclusive de tecnologia, ocupa o principal lugar no valor do PIB nacional. Setores da burguesia brasileira que em alguns momentos sonhavam com um capitalismo nacional independente assistiram suas ilusões se desvanecerem com a globalização total da economia e das comunicações impulsionada pelo enorme avanço da revolução técnico-científica.
Apesar das fortes manifestações operárias e populares ocorridas no início do século XX, foi depois da Segunda Guerra Mundial que aflorou com mais força o pensamento e a ação socialistas, que se somaram ao sentimento nacionalista e democrático de amplas correntes identificadas como esquerda. No governo eleito de Getúlio Vargas (1950/1954), governo JK (1956/1960), governos de Jânio Quadros e João Goulart (1961/1964) foi grande a participação das correntes democráticas, populares e de esquerda na política e na vida social do país. Essa ascensão foi barrada pelo golpe cívico-militar de 1964, que utilizou todas as armas possíveis de repressão para abafar o desejo das correntes de esquerda, que lutavam e lutam por reformas estruturais profundas que viabilizem um modelo de desenvolvimento socioeconômico que priorize as necessidades dos trabalhadores e do povo e reafirme o Brasil como nação soberana e socialmente justa. Desta maneira, a questão nacional tem como caminho de resolução o desejado aprofundamento democrático, que altere a atual conformação das classes sociais no país e a sua atuação no cenário internacional.
A derrota da ditadura militar mostrou que a luta social e política popular, mais uma vez, assistiu ao processo de redemocratização do país ser comandado pela elite dominante, apesar da luta armada e da resistência política ocorridas no duro período ditatorial. Não é por acaso que o lento processo de transição perdurou por quase dez anos (1979-anistia política até 1988-promulgação da nova Constituição).
As lutas econômico-reivindicativas dos trabalhadores atingiram seu ponto alto nas greves operárias do ABC em 1979 e 1980. Logo, as lideranças sindicais perceberam a necessidade de criar um partido político que representasse os trabalhadores, ocupando um espaço antes conquistado pelas organizações tradicionais da esquerda e os grupos que haviam combatido a ditadura com as armas nas mãos. Inclusive a maioria desses grupos incorporaram-se ao nascente Partido dos Trabalhadores/PT. A participação ativa das esquerdas contra a ditadura, pela democracia e pela melhoria das condições de vida da população, e, não se pode negar, a derrocada da União Soviética e dos países socialistas da Europa Leste, arrastando consigo os partidos comunistas pelo mundo, inclusive no Brasil; facilitando a transformação do PT na principal organização de esquerda no país. Com participação crescente nos processos eleitorais nos municípios, em estados e nos parlamentos, o PT em 2002, elegeu seu principal líder – Lula – Presidente da República, reelegendo-o e, ainda, elegendo por dois mandatos a primeira mulher presidenta – Dilma Roussef. Fora o simbolismo da vitória eleitoral de um operário e de uma mulher, a hegemonia petista em uma ampla frente política no governo do país mostrou avanços significativos nas condições de vida da população e na afirmação do Brasil como nação soberana. A política seguida, no entanto, não fugiu à conciliação, mesmo que conflituosa em certos momentos. Em questões fundamentais, ela não abalou a estrutura socioeconômica dominada pelo grande capital, nacional e internacional, e dos grandes conglomerados agrícolas, formados por agronegócios geradores de commodities que desempenham papel fundamental na formação do PIB nacional. A política de “o empresário ganhar e o povo viver melhor” esgotou-se com a crise econômica internacional que atingiu o Brasil a partir de 2014. Alguém tinha que pagar por ela. As forças conservadores logo decidiram que era necessário mudar o governo e a política para obrigar as classes e os segmentos explorados voltarem à situação de sempre: submeterem-se às históricas condições degradantes de vida para garantir o sistema econômico que as oprimiam, e, para isso a era chegada a hora de eliminar as incipientes conquistas sociais e de direitos institucionalizados nos períodos favoráveis dos governos petistas.
O governo de Dilma Roussef, apesar de no seu estertor ter insistido infrutiferamente na continuidade da política de conciliação de classes, foi apeado por um golpe midiático parlamentar. Seu substituto , o vice-presidente Temer iniciou o desmonte das conquistas sociais e democráticas obtidas nos governos petistas. Evidentemente, este processo foi acompanhado discretamente pelo olhar vigilante e alerta das Forças Armadas. Mas, restava um problema. Não havia condições de cancelar as eleições presidenciais programadas para 2018 e as pesquisas indicavam um amplo favoritismo do petista Lula. A solução encontrada amparou-se na enorme força do retrógrado judiciário brasileiro e da mídia televisa, jornalística, do rádio e da rede social. Mais uma vez, o falso combate à corrupção dominou os meios de comunicação e a sociedade brasileira. Modernas técnicas de comunicação psicossocial com comprovada eficiência espalharam-se pelo país. O objetivo era claro: caluniar o PT, as esquerdas e, principalmente, alijar Lula das eleições programadas. O líder do PT foi indiciado em dezenas de ações, condenado e preso, e, assim, impedido de concorrer ao pleito eleitoral de 2018. O instrumento dessa farsa jurídica foi a denominada “Operação Lava-jato”, comandada pelo então desconhecido juiz de primeira instância, Sergio Moro. O resultado foi a vitória eleitoral do mais direitista e incapaz candidato, Jair Bolsonaro, que contava com a simpatia de setores militares, da maioria das forças de repressão, de grupos protofascistas e de correntes conservadoras.
A perplexidade, incompreensão e recuo das forças de democráticas e de esquerda com a nova situação foram vencidos e beneficiados 1pelo total fiasco do governo bolsonarista. Em pouco tempo, revelou-se o fracasso na condução da política econômica e da tentativa frustrada de caminhar por um neoliberalismo arcaico e ultrapassado. O comportamento destrambelhado do presidente logo levou-o ao isolamento dos aliados que o levaram ao poder. A sua pauta de costumes e cultura mostraram a todos que se tratava de um homem tosco e com o pensamento ideológico muito próximo de concepções fascistas. O governo de Bolsonaro mostrou em toda a inteireza a necessidade do aprofundamento democrático na luta pelas transformações estruturais e sociais para o Brasil superar os enormes desequilíbrios formados desde a sua formação. As forças democráticas e a esquerda brasileira colocaram-se à frente pela defesa da democracia, contra a visão autoritária do governo e da sua política de destruição de direitos sociais e dos trabalhadores. O PT e o ex-presidente Lula foram reconhecidos por grande parte da população como os verdadeiros lutadores contra o presidente Bolsonaro e a política nefasta que levou o país a um dos piores momentos da sua história. Logo a farsa do combate à corrupção foi desmascarada e escancarada a operação cujo objetivo final era destituir o governo Dilma, criminalizar a esquerda e impedir a candidatura de Lula em 2018. Uma das consequências dessa nova situação foi a soltura de Lula, a sua absolvição ou arquivamento de todos os seus processos e a recuperação de seus direitos políticos que haviam sido usurpados.
Apesar das diversas tentativas de Bolsonaro e seu grupo, inclusive alguns militares, de descumprir o calendário eleitoral essa possibilidade está cada vez mais distante uma vez que o próprio Superior Tribunal Eleitoral está empenhado em sua realização. As pesquisas de intenção de voto realizadas nos últimos meses apontam a vitória de Lula nas eleições marcadas para outubro próximo.
O fracasso da política bolsonarista e o despreparo de seu principal mentor fez renascer em importantes segmentos das classes dominantes o desejo de tentar restaurar a política de conciliação, seja tentando uma candidatura identificada como terceira via (nem Lula, nem Bolsonaro) e outra buscando apoiar e influir no provável governo petista, tendência cada vez mais forte com as dificuldades de emplacar uma alternativa.
Setores democráticos e de esquerda, inclusive petistas, consideram que nas condições atuais esta concertação garante a lisura das eleições, facilita a provável vitória de Lula e permitirá a governabilidade necessária para reparar os estragos feitos pelo atual governo e iniciar com sucesso um novo ciclo governativo.
Entretanto, é cada vez maior em correntes de esquerda e no PT a tendência de abraçarem a opinião de que um possível governo Lula deva ser transformador e não simplesmente restaurador. A política insensata de Bolsonaro fraturou a unidade da elite dominante, não se trata mais de luta de interesses específicos no seu interior, mas da possibilidade de ser desafiado e colocado em xeque o modelo socioeconômico que sempre a favoreceu. Portanto, o atual momento e o vindouro são favoráveis à luta por transformações políticas e sociais profundas, que certamente não serão obra de um curto período de governo. Neste contexto, a candidatura do ex-presidente, mesmo entendida como início de um processo mais longo, precisa superar alguns obstáculos cuja solução depende da coesão interna do PT, da esquerda e dos movimentos sociais e populares. A vantagem da candidatura revelada na maioria das pesquisas não garante a vitória eleitoral. Um programa político objetivo deve unificar as diversas linhas de pensamento e a ação dos que apoiam o candidato e acolhem firmemente a proposta de alterações profundas. Ainda urge desarmar correntes direitistas que apostam no desrespeito ao calendário eleitoral ou no seu resultado, caso lhes seja desfavorável. A política de mudanças políticas e sociais necessita primeiramente de rever e revogar a política econômica de conteúdo neoliberal, reestruturar o poder econômico e politico do agronegócio sem desprezar a enorme importância que possui na economia nacional. É importante restabelecer os direitos sociais, trabalhistas e previdenciários arrancados do povo e dos trabalhadores e, simultaneamente, implementar políticas públicas que melhorem a vida da população, principalmente atacando a fome que atinge dezenas de milhões de brasileiros e brasileiras. A readequação do aparelho repressivo do país é fundamental para a segurança pública e o respeito aos direitos fundamentais dos seres humanos. A política externa independente é garantia de uma nação soberana e justa. Essas medidas a serem implementadas deverão ocorrer sob intensa pressão das forças oligárquicas que contarão com apoio da elite financeira e militar internacionais. O sistema de representação política atual criou, fomentou e fortaleceu a institucionalidade que afasta o parlamento, as comunicações, o judiciário e o Estado das verdadeiras necessidades do povo e do país. A esquerda e o PT não podem ter o receio de questioná-los. Formas de participação popular direta por meio das organizações sociais e populares não podem continuar sendo consideradas um tabu sagrado. A vitória da esquerda no Brasil nas eleições presidenciais de 2022 pode transformar-se no início de um ciclo histórico de desenvolvimento com o povo ocupando o papel de protagonista, ou, então, mais uma vez o Brasil pouco mudará e as transformações políticas ocorrerão novamente sob a égide das classes dominantes.
*Edwaldo Alves Silva é filiado ao PT.
(1) Publicado inicialmente com o título “La Gauche Brésilienne Réussira-t-elle à Relever son Défi Historique “ pela Fundação Jean-Jaurés do Partido Socialista Francês.
Traduzido para o francês por Jean-Jacques Kourliandsky, Directeur de l´Observatoire de L´Amerique Latine de la Fondation Jean-Jaurés.