Marcelino Galo quer proibir “capina química” em vias públicas
Resistiremos, e reinventaremos a luta e o esperançar
Resistiremos, e reinventaremos a luta e o esperançar
“Que notícias me dão dos amigos?
Que notícias me dão de você?
Sei que nada será como está
Amanhã ou depois de amanhã
Resistindo na boca da noite um gosto de Sol”
(Nada Será Como Antes)
Milton Nascimento e Fernando Brant
Flávio Passos
Vivemos tempos estranhos, perigosos e difíceis. Esta é a eleição mais síntese do Brasil. A eleição que expressa o grande abismo que separa dois países que dividem o mesmo espaço. No entanto, já não estamos mais diante de uma disputa entre dois projetos de governo, um mais à esquerda, alinhado às demandas sociais, à transferência de rendas, à diminuição da pobreza, à afirmação do papel primordial do Estado enquanto garantidor da vida da maioria, e o outro, mais à direita, defendendo serem mais importantes os interesses dos bancos, dos donos de indústrias e dos investidores. O que está em disputa no Brasil, neste 30 de outubro de 2022, é se recobraremos a Democracia enquanto condição mínima de retomarmos o pouco do que já tínhamos caminhado na superação das desigualdades que nos acompanham historicamente, ou se sucumbiremos, de vez, à barbárie, à violência, à exclusão e ao medo.
Escrevo estas linhas, a partir do que acompanhei de uma pequena – e serena – discussão em um grupo de aplicativo formado por estudantes quilombolas do Território Sudoeste da Bahia, por ocasião de algumas postagens sobre as perdas de direitos e a proximidade do dia de votação no segundo turno. Dentre os argumentos diversos dos estudantes, uma maioria muito consciente do seu lugar de classe, raça e etnia, do que o país tem atravessado nos últimos seis anos e do perigo que representa um resultado da votação que autorize a manutenção desse desgoverno que já provocou tanto retrocesso em nossa frágil democracia, em nossa frágil cidadania. No entanto, um grupo que, ali, percebendo-se minoritário, e talvez, um tanto quanto deslocado, uma vez que parecia aprovar a continuidade do atual governo, começou a manifestar falas desconexas, mais para palavrões, xingamentos, acusações, do que mesmo uma pré-disposição ao diálogo construtivo, ou mesmo a defesa de um projeto de sociedade e de ação do Estado para o benefício de algum grupo ao qual ele pertencesse.
E veio como que um filme a memória do que o Brasil já viveu nos últimos 60 anos, como quando um governo popular, com projetos de grandes reformas estruturais e estruturantes, em prol da conquista da soberania nacional e popular, foi tido como ameaça na geopolítica imperialista, naquele período da Guerra Fria. E aquelas intenções foram lidas como que um perigoso projeto “comunista” que transformaria o maior país da América do Sul em uma nova Cuba. O resultado nós sabemos: o golpe militar de 1964, o AI-5, em 1968, e todas as atrocidades dos 21 anos da ditadura militar. Naqueles episódios, tiveram, os militares, o patrocínio dos EUA, o apoio da elite econômica nacional, de setores conservadores da Igreja Católica, de parte considerável da mídia hegemônica, com o Congresso e a Suprema Corte tomados de assalto. E eis que chegamos a 2022, quando, há doze anos, dificilmente, imaginaríamos que o país tão depressa estaria em uma situação tão parecida, ou até pior.
Após o resultado do primeiro turno das eleições e acompanhando as intenções de voto para este segundo turno, com uma margem de empate técnico, colocando em grande incerteza o que será o amanhã, é difícil de acreditar e entender a que ponto chega a alienação de boa parte da população. Mas, temos algumas pistas que nos ajudam a, ao menos, entender. Primeiramente, o trabalho sujo que a mídia corporativa e do mercado fez de incutir ódio nos olhos, ouvidos e corações da classe trabalhadora, durante décadas, mas especialmente nos governos progressistas, fazendo com que boa parte da população continuasse a esperar, não das ações da organização social e do Estado, mas do mercado, a sua salvação, e, consequentemente, odiar as instituições e organizações que surgiram das históricas lutas por direitos, tidas, subliminarmente, como “atraso ao desenvolvimento”.
A mesma mídia que nunca exaltou as cotas, raciais ou sociais, ou o programa “Mais Médicos”; a mesma mídia que nunca valorizou o SUS (e teve que se curvar à sua eficácia, mesmo que quase nunca citando que o que salvou o país de ter mais de 1,5 milhão de mortos pela pandemia do Coronavírus foi o Sistema Único de Saúde); a mesma mídia que, nos últimos seis anos de golpe, “passa pano” para todas as atrocidades desses desgovernos pautados na micropolítica, fazendo com que a população considere que tudo que eles falam (e principalmente, fazem) seja tido como “natural” ou “normal”.
Para piorar, para cegar de vez boa parte da população, que é obrigada a se contentar com os veículos de emburrecimento, temos o ambiente escolar como um ambiente profundamente policiado por forças conservadoras. Tais forças viram no direito ao acesso à Educação Sexual o perigo da “ideologia de gênero”, mas não reconhecem que o grande perigo que as crianças e adolescentes correm está nos vínculos mais próximos, quando não na própria família, e que a educação exerce esse papel de prevenção e de orientação para o respeito. Forças que viram na implementação da Lei 10.639/03, que obriga o ensino da História e da Cultura Africana, Indígena e Afro-indígena na sala de aula, o perigo de “ensinar coisas do diabo para as nossas crianças”, posicionando-se, de forma agressiva, e com grande dose de racismo religioso, contra a diversidade cultural presente em nossa sociedade e nas escolas.
Esse movimento, ao tirar da escola essa possibilidade que crianças negras, periféricas, quilombolas, de outras comunidades tradicionais e LGBTQIAPN+ tenham acesso à valorização de seu pertencimento étnico-racial e de reconhecimento da sua identidade, reage ao potencial transformador que existe na tomada de consciência de si daqueles e daquelas cujos os antepassados sempre foram colocados, pelo discurso colonizador, em condições de subalternidade e de não sujeitos. O grande medo da neocolonização é de uma ruptura epistemológica, a partir de uma ruptura social e cultural.
Para tentarmos compreender esse processo de alienação que acomete parte desta nova geração, precisamos nos atentar para o papel dos movimentos de caráter religioso. Nas últimas décadas, temos o predomínio de movimentos neopentecostais em grande parte das igrejas cristãs, a começar pelas maiores denominações, mas, e principalmente, na constelação de pequenas igrejas neopentecostais. Enquanto na Igreja Católica, tais movimentos foram se pulverizando pelo país, predominantemente entre a juventude das paróquias, formando agremiações particulares alinhadas a um modelo descentralizado de organização eclesial, nas igrejas evangélicas, o desmembramento das grandes Igrejas Pentecostais para as menores ganhou força, com muito maior liberdade de difusão, mantendo uma centralidade na orientação pastoral e teológica, formando grandes redes neopentecostais evangélicas. Tais organizações passaram a marcar presença em todos os espaços periféricos deste Brasil pós-urbanização, pós década de 90, e, principalmente nos anos 2000 e 2010.
Nos últimos anos, em especial, os movimentos carismáticos católicos, tem conseguido adentrar as comunidades rurais até então herdeiras de um catolicismo popular e de preservação de práticas místico-religiosas de diversas matrizes – sem a perseguição histórica a que estavam submetidas práticas similares nos espaços urbanos, desde o período colonial – e, mais recentemente, pelas Comunidades Eclesiais de Base.
As denominadas CEB’s, uma das mais importantes expressões da Teologia da Libertação, são uma prática de igreja centrada na vida da comunidade pautada na leitura da Bíblia a partir do contexto social e político e da necessidade de atualização da sua mensagem na luta pela justiça. Não tem como entender o Brasil dos últimos quarenta anos, sem compreendermos a importância das CEB’s no surgimento de movimentos populares do campo e da cidade, e de partidos políticos, especialmente, o Partido dos Trabalhadores. Muitas e grandes lideranças político-partidárias nacionais carregam em suas biografias a participação em pastorais como, por exemplo, a (CPT) Comissão Pastoral da Terra, a Pastoral Afro-Brasileira e a Pastoral da Juventude, ou em movimentos sociais, como o MST (Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).
No entanto, as CEB’s, bem como, a Teologia da Libertação, já vinham perdendo a sua força desde a segunda metade da década de 1990. Havia ficado um legado de consciência popular dos direitos dos trabalhadores, da necessidade de organização política. Da parte do clero, mas também da catequese e da liturgia, grandes transformações no sentido de uma uniformização a partir do centro – do Vaticano. A Igreja, desde o início dos governos progressistas – não obstante as Campanhas da Fraternidade e o posicionamento de muitos bispos em diversas ocasiões da vida social e política do país – com raras manifestações públicas – incluindo as homiléticas – passa a assumir uma alusão menos explícita a temas sociais, políticos ou de interpretação bíblica que pudessem fazer o discurso ser confundido com uma defesa de pautas político-partidárias. O acesso remoto às missas durante a Pandemia fez emergir dois ícones de um posicionamento mais declarado em defesa dos pobres. Um, o Pe. Júlio Lancellotti. E, Dom Orlando Brandes, arcebispo da Arquidiocese Aparecida, muito antes do seu posicionamento, já no segundo turno, no dia da Padroeira do Brasil, ao questionar os rumos a que o Brasil havia tomado com o aumento dos discursos de ódio e do armamento.
Com a conquista da eleição presidencial de 2002, pelo Partido dos Trabalhadores, o Brasil passaria por diversas transformações. Uma delas, a energia elétrica chegando a quase totalidade da população rural. E, com a energia, a modernidade, o conforto, a internet e os sinais de emissoras de televisão, inclusive as TV’s cristãs, especialmente as católicas, como a TV Aparecida, Século XXI, e Canção Nova e uma ênfase em uma Igreja, ora voltada para uma visão mais a partir do Vaticano, ora voltada para uma orientação mais neopentecostal.
Todo esse movimento neopentecostal tem como característica o forte apelo a uma “teologia da prosperidade”. Mas, apenas a promessa de riqueza não garantia adesão e sentido de pertencimento. Como artifícios de mobilização e cisão social um discurso teológico pautado no “combate ao demônio” é fundamental. Nessa demanda de “guerra santa”, escolhe-se como alvos e inimigas as religiões de matriz africana, especialmente, a Umbanda e o Candomblé, mas também uma vasta pauta ligada a valores e costumes, especialmente as liberdades e os direitos sexuais, na denominada “ideologia de gênero”. Por fim, nos últimos vinte anos, uma nova agenda adquiriu prioridade de combate nos movimentos neopentecostais, primeiramente, em setores do catolicismo, e, depois, em boa parte do evangelismo, ganhando gradativa força de impacto no resultado das urnas: o combate às “ameaças do comunismo”, representadas, no Brasil, pelos partidos de esquerda, pelas pastorais e movimentos sociais, e por qualquer indício da presença da Teologia da Libertação.
Em toda essa dinâmica social é possível percebermos uma disputa política. As religiões monoteístas trazem consigo esse elã expansionista e, junto a ele, uma necessidade de dominação política como forma de garantir que as sociedades sejam regidas pelas leis religiosas. Nesse sentido, aquele país que havia saído de 500 anos de colonização, ao mesmo tempo em que conquista o direito a um Estado Laico, vê-se envolto a uma reação social de novos movimentos religiosos com pautas não tão novas. Há uma disputa, não só “de narrativas”, mas de qual projeto de ser humano, de sociedade, de Estado e, consequentemente, de país prevalecerá.
O grande paradoxo nessa história toda é que essa juventude à qual me referi no início do texto, rural e quilombola, nascida entre 1998 e 2005, é neta de lideranças de uma igreja popular, bisneta de rezadeiras, benzedeiras e parteiras, filha de lideranças de comunidade, herdeira de formas populares de vivência do Evangelho e do catolicismo, e de organizações sociais, de pequenos agricultores familiares, nas milhares de comunidades rurais Brasil adentro.
Uma juventude que nasce no início do primeiro governo Lula (2002-2005), quando da Lei 10.639/03. Que vem ao mundo junto com a energia elétrica, através de programas e políticas de governo, como o “Luz Para Todos”. Que já não mais estará condenada à desnutrição porque, ao redor do “Bolsa Família”, foi criada uma estrutura forte de diversas políticas garantidoras de direitos para as mães e para as comunidades, na Assistência Social, com foco no combate à violência doméstica e na garantia dos direitos das crianças e adolescentes, além do acesso à água potável, através de milhares de cisternas de coletas de água da chuva construídas pelo sertão nordestino.
E, entre 2005 e 2010, quando ela começa a ingressar na escola, já encontra uma merenda diferenciada, em quantidade e qualidade, enquanto uma política pública de enfrentamento à desnutrição infantil nas comunidades quilombolas e rurais de todo o país. Escolas sendo reformadas, construídas e ampliadas. Professoras e professores acessando o Magistério Superior, através das parcerias entre municípios e universidades públicas. Estudantes sendo transportados em ônibus escolares confortáveis e seguros, “como nunca antes”.
Quando essa juventude de hoje estava no fundamental I, eram aprovadas as cotas na UESB (2008); as Diretrizes Nacionais da Educação Escolar Quilombola (2012) eram aprovadas e sancionadas pela presidenta Dilma Roussef, a qual, também cria, em 2013, o Programa Bolsa Permanência, uma bolsa mensal, no valor de R$900,00 (novecentos reais), possibilitando que milhares de estudantes indígenas e quilombolas conseguissem se manter na universidade pública, em todo o país. No mesmo ano, é sancionada a Lei Nacional das Empregadas Domésticas, e, em 2015, a Lei do Feminicídio, pela mesma presidenta. O que parecia um caminho linear de alcance e amadurecimento da condição de nação, tornou-se um sonho interrompido em uma série de golpes. E começamos a regredir.
Os próximos oito anos, enquanto essa juventude, então adolescente, atravessava o Fundamental II, Dilma sofreria um golpe de estado, seguido pelo governo Temer, o assassinato de Mariele Franco, a prisão do ex-presidente Lula e a eleição de Bolsonaro. Este, de uma pífia atuação enquanto deputado federal por 27 anos, foi beneficiado por uma facada muito da suspeita, por uma guerra de disparo unilateral de milhares de fake news contra o grupo oponente, o candidato do Partido dos Trabalhadores, Fernando Haddad, substituto de Lula, quando haviam se esgotados todas as tentativas de anulação dos processos da Lava-Jato.
“Lava Jato” foi o nome dado a um processo de desbaratar corrupções em estatais, especialmente, na Petrobrás. Seu principal objetivo, além de prender o que poderia vir a ser, pela terceira vez presidente do Brasil, desestabilizar o país, econômica e politicamente, promover a saída da esquerda do poder, e garantir ao mercado internacional o controle dos rumos e definições das comodities brasileiras, especialmente, o petróleo. O que sempre esteve em jogo, o Pré-Sal, descoberto na segunda metade da década de 2000. Quando entra na juventude propriamente dita, Lula é solto e inocentado em mais de 25 processos, e essa geração está tentando concluir o Ensino Médio, em meio a uma pandemia.
Voltando ao nosso assunto: a alienação de boa parte da população, mesmo em tempos de tantas atrocidades e o perigo de permanência de um governo nefasto à frente de uma das maiores economias mundiais. Desde a primeira metade da década de 2010, muita coisa já vinha sinalizando um retrocesso no país, especialmente em termos de respeito à diversidade de pensamento, de crença e ideologia política, mas também de orientação sexual, de direitos população negra e das mulheres. Falar de negro na escola, de direito, havia passado para “moda” e, de repente, já se tornara algo “perigoso” ou mesmo, “exagerado”. Faltar em Direitos Humanos já significaria “defender o PETÊ”. Falar sobre racismo, feminicídio, LBGBTfobia já passara a ser considerado “vitimismo”. E falar de cotas era ir contra a “meritocracia”. O que mais me intrigava, agora, olhando para o ambiente de sala de aula, entre 2014 e 2016, eram algumas falas de alguns estudantes que suscitavam um estranhamento do tipo: “de onde esse menino está tirando essas ideias”. Sim, o maior aplicativo de conversas já estava nas mãos dos adolescentes brasileiros naquele período. Só bem mais tarde ele passaria a ser uma extensão de nossos corpos e mentes.
Paralelamente a tudo isso, mas em profunda dessintonia, a criminalização da esquerda e dos partidos e lideranças de esquerda entrou na veia, mente e coração dessa geração. A mídia cumpriu o seu papel de transformar o Partido dos Trabalhadores numa “orcrim”, crime do qual ela nunca precisou se redimir, mesmo com todo a bagaceira produzida. Enquanto isso, essa nova geração não teve tempo de compreender a própria história na qual ela estava imersa. Sempre é assim. Daqui a cinco ou dez anos, olharemos para o que vivemos nos últimos seis anos e nos envergonharemos.
Resumindo. Comecei dizendo que esse é um movimento político. E concluo dizendo que é um movimento político exitoso. Talvez, não vitorioso. Mas, exitoso. Um projeto de caráter ultraneoliberal, que sequestra a própria concepção de Deus para colocá-la a serviço de um projeto fascista de sociedade e, de quebra, leva a consciência de uma nação inteira, principalmente daquela geração que poderia ser a principal beneficiada de todas as transformações em curso.
A cristandade do final do século XIX e início do século XX, havia conseguido, no Brasil que a Igreja retomasse, através do clero e das paróquias, a centralidade da condução da fé, por séculos, nas mãos de homens e mulheres deste “Brasil profundo”. Agora, quando a classe trabalhadora, por força das organizações populares, muitas delas nascidas no seio, nos porões, nas sacristias e nos barracões de igrejas e Comunidades Eclesiais de Base (as CEB’s), consegue alcançar, através da luta social e política, ocupar a principal estrutura de governo deste país (o que nunca significou ocupar a principal estrutura de poder), e fazer com que algumas políticas públicas de caráter social possibilitem a milhões de famílias acessarem o mínimo de dignidade, inclusive o acesso de jovens negres e quilombolas em universidades públicas, como a UESB e a UFBA, e outras mais de duzentas pelo país, há um “mal estar” instalado na sociedade.
A chamada “elite”, os ricos que sempre viveram de herança e da exploração dos mais pobres, majoritariamente, negros, se assusta ao ver tamanha transformação em tão pouco tempo. E o sistema ideológico é acionado para dar um basta, frear esse impulso da “turma do rolezinho” e sua sede de mais dignidade, mais direitos, mais acessos, mais bolsas, mais reparação, mais vez, mais voz e mais votos.
E, como sempre, na história, especialmente no processo de colonização de corpos e do pensamento, a religião é sequestrada e instrumentalizada para um projeto de ideologização da vida a favor dos opressores. Para isso, cria-se inimigos fictícios, amplificam-se monstros inexistentes, instalam-se narrativas que vão colando, feito gosma que não sabemos de onde veio, e também não sabemos como dela nos livrarmos sem nos ferirmos com alguns esfregões.
Esse movimento alcançou o seu objetivo, relativo êxito e uma pequena vitória. Conseguiu fazer um grande estrago no tecido social brasileiro. Conseguiu tirar de boa parte da juventude atual o que lhe é mais peculiar que é a capacidade de criticidade, de sonhar, de criar. Eleger o “comunismo”, a “ideologia de gênero” ou o “combate ao diabo” como pautas políticas de evangelização, ou como pautas de evangelização e política, é esvaziar de sentido o próprio sentido de ser cristão. Porque não há combate sem combatidos e combatentes. E essa é a destruição pretendida. Tirar do Brasil a possibilidade de os pobres se entenderem.
Para se ter ideia da “barbaridade” a que estamos nos referindo. Alguém poderia se perguntar se não bastaria a essas pessoas – esses perigosos quase 50% de eleitores dos votos válidos –, os quais, como dizem os mais velhos, “já sabem ler”, procurassem olhar de forma crítica o que está sendo dito nos sermões, nas pregações, nas salas de aula, no salão de beleza, no bar da esquina, no grupo do zap, no Jornal da TV, na rádio, no Insta e no Face, nos outdoors, mas também nos muros da cidade, etc? Frente a tudo o que aconteceu no Brasil nos últimos oito anos, bastaria ter coragem de perguntar: “por que uma liderança aclamada e respeitada dentro e fora do país foi alvo de um julgamento considerado arquitetado e mentiroso?”. Não só de perguntar, mas de ir atrás das respostas possíveis e sérias. “Filtrar”, refletir e posicionar-se de forma racional. Porém, vivemos tempos de excesso de informações e carência de formação. De formação política, inclusive.
Parte de uma geração foi sequestrada pelo coração, à medida em que a sua mente foi esvaziada de sentido histórico, de sentido comunitário, de sentido de pertencimento, inclusive de classe. E no lugar foi cravado, com profundos alicerces psicológicos, o ódio como um instrumento de guerra. Uma guerra religiosa contra, principalmente, aqueles seus contemporâneos, também denominados de “turma do rolezinho”, mas também de outras tantas turmas de outros tantos rolês, aleatórios, mas também libertários.
Ainda sobre aquelas manifestações de intolerância política citadas no início do texto, o que mais me intriga, mas também a muitos e muitas jovens naquele grupo, é como o poder da alienação é exerce tal força sobre as mentes, ao ponto de, como disse uma delas, “tornar desconhecido alguém que pensávamos conhecer”. Ao ponto de, mesmo em nome da fé em Deus, e da fé em Jesus Cristo, o que é mais contraditório, dizer que apoia alguém que o mundo inteiro hoje olha e elege como sendo o maior ditador de extrema-direita governando um país atualmente. Um anti-líder, um anti-humano, um anti-ciência, um anti-pobre, um anti-Deus, um ser que destila ódio, mentira, favorecimento próprio, manipulação das instituições a seu favor, descrédito para com a democracia e desrespeito para com o próprio cargo que ocupa.
Que poder tem esses falsos profetas que conseguem, junto a consideráveis segmentos de cristãos católicos, especialmente jovens da classe trabalhadora, se sobreporem ao próprio Papa Francisco, à CNBB, em um pesado processo de alienação social religiosa do próprio Evangelho? No segundo turno, por exemplo, a Conferência dos Bispos declarou, textualmente, que “a vida não é prioridade para Bolsonaro”. Posicionamentos explícitos de apelos em defesa da democracia, da vida dos pobres, contra a tirania, o ódio e as políticas de morte. E essa é a tradição mais cristã da Igreja. Enquanto isso, que tipo de cristãos preferem aderir a um discurso de ódio, a fake news religiosas, e apoiarem um tirano, um negacionista, alguém que demonstrou não ter um mínimo de compaixão para com mais de 700 mil mortes pela Covid-19? Um corrupto que, para tentar a reeleição, sequestrou mais de 60 bilhões do orçamento de 2023, e os distribuiu para deputados de sua “base”, sem nenhum tipo de responsabilidade, recurso que fará falta nas mais diversas áreas, da ciência ao saneamento básico, da saúde à educação, da cultura à segurança pública. É sobre isso.
Este texto, nesta noite de sábado, véspera do dia mais histórico de nossas vidas, quando não sabemos, a essa altura do segundo turno, qual será o resultado que nos revelarão as urnas deste domingo, tem como propósito lançar algumas questões. Mas, a principal, mesmo, é sobre qual o sentido de dizer que se acredita em Jesus Cristo e se tem a coragem de votar em favor de um projeto de morte, mentira, injustiça e violência. Que, como disse ao mundo o Papa Francisco, na quarta-feira, na homilia, “Peço a Nossa Senhora Aparecida que proteja e cuide do povo brasileiro, que o livre do ódio, da intolerância e da violência”. Ou se é cristã, cristão, ou se vota em um projeto de morte. As duas coisas são irreconciliáveis. Alguém, no grupo de aplicativo, chegou a sugerir a exclusão da pessoa. Mas, entendemos que, em um projeto democrático de sociedade, aquele, ainda, era o melhor lugar para quem pensa diferente se sentir acolhido.
Que todas as forças do nosso Sagrado nos conduzam. Seja qual for o resultado das urnas, resistiremos, e reinventaremos a luta e o esperançar. E, como cantou Vander Lee, em “A Voz”, “Que palavras sejam gestos / Gestos sejam pensamentos / da voz que move nossos corações…”.
P.s: Sim, em outro texto poderemos abordar sobre essas turmas de juventudes que mantém vivas e hasteadas as bandeiras da liberdade, do amor, da fé no ser humano e do respeito pela pluralidade da vida. Dentre elas, a juventude quilombola e negra que adentra os espaços universitários pelas políticas de cotas e promove diversas revoluções com suas múltiplas e interconectas transições políticas, estéticas e ancestrais.
Flávio (José dos) Passos
Professor na Rede Estadual de Ensino da Bahia
Vitória da Conquista – BA