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Emendas secretas, uma arma eleitoral?

Eu, estava como Secretário de Governo na gestão do então prefeito Guilherme Menezes durante a discussão e aprovação da criação das emendas impositivas. Tratava-se, em termos gerais, da institucionalização de emendas orçamentárias aprovadas pela Câmara Municipal que deveriam ser obrigatoriamente executadas pelo poder executivo, Essa proposta vinha acompanhada do razoável argumento de fortalecer o Poder Legislativo que disponha de poucos instrumentos eficazes para cumprir atividades mais concretas, ampliando, dessa forma, o seu leque de atuação de legislar e fiscalizar.
Confesso as dúvidas que eu tinha na época e que perduram até hoje. A própria denominação “impositiva” indica uma imposição de um poder sobre o outro fora das atribuições legais e específicas de cada um. Afinal, todas as emendas orçamentárias aprovadas pelo poder legislativo são encaminhadas ao Executivo, devendo serem analisadas juntamente com o vereador proponente podendo ou não serem incluídas na peça orçamentária final. É bom ressaltar que o Orçamento Público, com exceção das obrigações legais, e, agora, as emendas impositivas, são autorizações legislativas.
O processo de institucionalização das emendas impositivas ocorreu no Brasil inteiro e foi aprovada nos três níveis da federação com exigências parciais de algumas destinações principalmente em saúde e educação públicas. Creio que a obrigatoriedade de cumprimento das emendas impositivas não atende todos os princípios do conceito de independência harmoniosa entre os poderes defendida e difundida por Montesquieu desde o século XVIII.
A história tem demonstrado que ações, mesmo que sejam originalmente positivas mas que contrariem fundamentos básicos do Estado de Direito tendem a desenvolveram desdobramentos altamente negativos. Parece que foi o que aconteceu com a criação das emendas impositivas que foi a origem do que hoje são conhecidas como emendas secretas, independentes, e até emendas pix. As emendas secretas contrariam o próprio caráter do orçamento público porque não se sabe para quem vai e nem o que será feito dele. Repetiu-se nacionalmente a desfaçatez do ministro bolsonarista que pregava “abrir as porteiras para passar a boiada”.
Esse processo não transparente de uso do dinheiro público pode tornar o Executivo cúmplice de alguns elementos inescrupulosos incrustados nas Câmaras Legislativas. Evidentemente, essa afirmação não absolve o poder Executivo de seus próprios malfeitos.
As classes dominantes brasileiras sempre encontraram formas pacíficas e/ou violentas de manterem-se no poder, isso desde as capitanias hereditárias. A história do Brasil tem sido a crônica de um povo que não se submete, obrigando a elite a permanentemente buscar novas formas de dominação. Foram três séculos de poder colonial, mais de sessenta anos do período imperial neocolonialista. Os governos da chamada república velha se alicerçavam no coronelismo latifundiário que dominava os estados que submetiam o poder político a seu serviço. O período getulista oriundo da revolução de 1930 foi dominado pela ditadura do Estado Novo que trouxe novos atores políticos mas prosseguiu a missão de reprimir os movimentos operários e camponeses, O desenvolvimento capitalista e os fatos a partir de 1930 inauguraram a história moderna mais recente do Brasil, A extinção do Estado Novo promovida pelo alto comando getulista das forças armadas e com forte influência da situação internacional do pós-guerra, formaram um regime com características básicas de democracia burguesa que, apesar de muitos recuos e poucos avanços, foi abruptamente interrompida pelo golpe militar de 1964. A ditadura que se seguiu perdurou até 1985 quando a sua derrota permitiu o estabelecimento do Estado de Direito consagrado pela Constituição Federal de 1988.
Seja por meio de medidas violentas e repressivas ou políticas formais de representação popular o objetivo das classes dominantes sempre foi manter-se no poder ou promover alterações ou reformas sob o seu total controle. O predomínio da elite dominante sempre encontrou forte resistência do povo e das classes oprimidas. As lutas dos povos originários da terra, a resistência dos escravizados sequestrados na África, as rebeliões nativistas e contra a colonização, as lutas indígenas, camponesas e operárias, enfim, as lutas populares pela vida, a liberdade e a democracia, algumas com vitórias parciais e muitas que obrigaram as classes dominantes mudarem as formas de dominação.
Desde o final do século XX e a consolidação democrática, apesar de alguns aloprados golpistas, a permanência da hegemonia burguesa passou a ser disputada nos marcos institucionais. Hoje, é evidente que a aventura golpista do bolsonarismo não contou com a força necessária para interromper o processo institucional que o país está atravessando.
Ultimamente muitos setores mais reacionários do conservadorismo brasileiro se identificam como “de Direita” abraçando concepções muito próximas do fascismo. Mesmo com tais ideias são obrigados pelo mundo real a aparentemente desenvolverem sua prática obedecendo às normais legais, principalmente as eleitorais.
Desde a Constituição de 1988 a escolha dos governantes, a sua permanência ou alternância tem ocorrido pela via eleitoral, meio que tem sido o principal fator da correlação de forças no país. As classes dominantes têm uma larga experiência na utilização de formas de participação nas eleições que pouco expressam a verdade eleitoral. Desde os tempos do voto de cabresto, a influência do poder econômico, a grande mídia (agora também a rede digital), a coerção, o clientelismo e tantas outras formas de impedir que o povo e os trabalhadores exerçam em sua plenitude a capacidade de utilizar o voto como instrumento a seu favor e de transformações sociais. É evidente que ocorreram progressos no sentido de aperfeiçoar o sistema eleitoral: o voto secreto, o disciplinamento da propaganda, a proibição do financiamento empresarial, o fundo eleitoral público, o aperfeiçoamento da justiça eleitoral, a urna eletrônica, as cotas de gêneros e diversidades nas candidaturas (que deveriam ser nas vagas), e outras condições que somadas explicam a resistência das correntes de direita/bolsonarista aos avanços legais e técnicos conquistados no processo eleitoral.
Neste contexto acontece o surgimento das chamadas emendas secretas em suas diversas formas, lembrando-se de sua origem nas emendas impositivas que buscavam inocentemente fortalecer o poder legislativo, esquecendo que essa tese é apenas um dos aspectos do aperfeiçoamento democrático.
Infelizmente, cumpriu-se o desejo do ministro bolsonarista: abriram a porteira agora é passar a boiada!
Os conservadores, a direita, os simplesmente oportunistas desfrutam de sólida maioria no Congresso Nacional, em importantes estados e nos principais municípios da Federação. Para eles importa conservar a hegemonia no aparelho de estado. Acredito que a instituição do “orçamento secreto” foi motivada pelo interesse de alguns deputados se reelegeram e pelas maneiras pouco democráticas de eleição da mesa diretora daquela casa. Os desejos imediatos de alguns transformaram-se em instrumento de manutenção de poder das elites políticas brasileiras e, pasmem, custeado pelo dinheiro público. Erigiu-se um sistema que reforça extraordinariamente o afastamento do povo das decisões de governo e por muitos outros meios mantém o predomínio político e cultural da burguesia na sociedade.
Além de fonte de corrupção, as emendas secretas garantem ou facilitam a vitória de quem está no poder, seja no legislativo ou no executivo. O esquema começa nas bases, nos municípios, no poder local. O prefeito, o vereador ou o candidato recebe recursos, obras ou serviços que o favorece nas regiões ou setores de interesse, tornando letra morta a fiscalização da justiça eleitoral. Estabelece-se por meios financeiros uma relação espúria que liga o vereador, o prefeito, o deputado ou senador que se alimenta de emendas impositivas/secretas, sugadas do Orçamento que garantem currais eleitorais.
Não se trata de pouca coisa. Esse tipo de emendas em 2024 totalizou mais de cinquenta bilhões de reais que comparados com o orçamento deduzido das despesas obrigatórias é uma enorme parcela dos recursos públicos!
Comecei a observar esse fatos nas eleições municipais de 2022 quando um candidato a vereador me perguntou se eu podia “arrumar” um deputado para ele. Ao responder que não estava entendendo o pedido, ele, inocentemente, respondeu que estava disposto a se ligar a um deputado que o contemplasse com emendas que nas próximas eleições teria o apoio total dele. Logo, percebi que não se tratava de um sentimento individual mas que a maioria dos candidatos tinha a mesma disposição.
A ligação política, ideológica, de confiança, partidária, e, até, por simpatia entre candidatos em diversos níveis é legítima e necessária, mas quando essa relação ocorre por questões financeiras e materiais certamente desvirtua o processo político e eleitoral.
Deformações parecidas sempre existiram nas disputas eleitorais mas a partir do momento em que se transformaram em um sistema desde as bases até os mais altos cargos ajudam a permanência no poder das classes que ao longo do tempo dominam o Brasil.
O surgimento das emendas secretas aconteceu no Congresso Nacional dominado pelo “Centrão/Lira e no governo Bolsonaro e se utilizam do dinheiro público como armas eleitorais que facilitam a vitória de quem está no poder. Bolsonaro encerrou o seu governo em total descrédito e mesmo assim conseguiu quase 50% dos votos e não se reelegeu porque o adversário era Lula e o sistema de emendas parlamentares secretas ainda não estava tão consolidado como atualmente.
A permanência da mesma estrutura de poder impede a renovação política e o surgimento de novas lideranças populares no campo eletivo. Tratando-se de um sistema institucionalizado pouquíssimos conseguem romper com o peso decisivo das condições financeiras, estruturais e o apoio recebidos por meio de emendas secretas recebidas “de cima”. A consequência torna-se clara: quem não entra no sistema está fadado à derrota.
O abuso desmesurado do dinheiro público começou a provocar a reação de parte do STF, principalmente do ministro Flávo Dino, de Tribunais de Contas e órgãos de controle. Cabe ás forças democráticas e populares barrar esse processo que desvirtua as emendas parlamentares e macula a verdade eleitoral. As forças de esquerda precisam derrotar esse esquema que impede a possibilidade de vitória popular e avançar no verdadeiro aprofundamento democrático indispensável à realização das reformas que o Brasil necessita.
Edwaldo Alves Silva é filiado ao PT.