O Brasil tem seis milhões de domicílios sem ocupação
Só em Porto Alegre são 40 mil sem uso, mas o déficit habitacional do país é de quase oito milhões de imóveis
Viver em meio a prédios é uma realidade para os moradores de grandes cidades. Entretanto, algo que muitas vezes passa despercebido aos olhos acostumados com o cenário de pedra, é a quantidade de imóveis abandonados na urbe.
De acordo com resultados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2015, 7.906 milhões de propriedades desocupadas teriam potencial para serem ocupados no país. Destas, o Governo Federal é proprietário de 10.304. Porém, mesmo com a imensa quantidade de imóveis vazios, o Poder Executivo tem uma despesa anual de R$ 1,6 bilhão com o aluguel de espaços para acomodarem órgãos públicos no Brasil.
A contradição é que apesar de ser um país repleto de construções sem uso, o Brasil conta com um déficit habitacional alarmante. Em 2015, segundo a Fundação João Pinheiro (FJP), faltavam seis milhões e 355 mil moradias no país. Uma violação a um direito garantido pela Constituição.
Só na capital gaúcha, o IBGE estima que existam 40 mil imóveis abandonados de variados tamanhos, entre particulares e públicos. São diversos os motivos pelos quais construções caem em desuso. Um dia projetadas para serem usufruídas, são esquecidas e se tornam espaços obsoletos nos municípios.
Observar estes contrastes, nos impulsionou a produzir esta investigação. Ao longo dos últimos três meses, nosso objetivo foi identificar aspectos sociais, políticos e burocráticos que impedem o enfrentamento deste problema. Para isso, conversamos com especialistas, vítimas e figuras públicas. Buscamos ainda contar a história de dois prédios públicos que servem como exemplo para as questões aqui abordadas.
A responsabilidade do poder público
A escassez de dados disponíveis sobre os imóveis abandonados foi o primeiro obstáculo encontrado ao tentar começar a construir a investigação. Muitas, das poucas informações oferecidas, são imprecisas e desatualizadas, dificultando um real mapeamento do município e a criação de políticas públicas efetivas. A percepção é compartilhada por Heriberto Ross Maciel, promotor da Justiça de Habitação e Defesa da Ordem Urbanística do Ministério Público do Rio Grande do Sul, para quem estes dados precisam de um tratamento técnico e de depuração.
“Creio que há um critério objetivo para que qualquer município brasileiro, a partir da Lei 13.465/2017, deflagre a investigação. Basta começar pela relação de imóveis com IPTU há mais de 5 anos sem pagamento. Assim, as Secretarias Municipais da Fazenda poderiam encaminhar para o respectivo órgão municipal, que tiver atribuição para tanto, iniciar o processo administrativo”, afirma.
De acordo com Heriberto, o poder público não possui responsabilidade por fiscalizar apenas os imóveis em desuso que lhe pertencem em primeira instância. Os imóveis particulares abandonados, cujos proprietários não praticam atos de conservação e que não estejam sendo ocupados por outras pessoas, devem ser monitorados pelo município e, após três anos, serem declarados bens vagos, tornando-se propriedade da cidade.
Se o proprietário não exercer atos de conservação, não pagar tributos municipais — leia-se IPTU -, a suposição de deserção da propriedade é de caráter absoluto. “Esta norma está contida no artigo 1276 do Código Civil, em especial o parágrafo segundo. Esta regra ficou mais clara por meio da Lei Federal 13.465/2017, a Lei de Regularização Fundiária, artigo 64, que adota o critério de presunção de abandono caso não adimplir os ônus fiscais durante 5 anos. Já o artigo 65 prevê a destinação social, tanto em programas habitacionais como na prestação de serviços públicos”, explica.
Deste modo, fica estabelecido pela lei que prédios que não contribuem com o IPTU e estão sem uma ocupação ou atividade, devem ter sua tutela retirada e, como afirma o promotor, serem destinados a uma finalidade social. “A Comissão de Análise de Gerenciamento de Imóveis Abandonados (Cagim) em Porto Alegre, em 3 ou 4 anos da formação da equipe atual, não conseguiu arrecadar nenhum prédio. E é o papel da minha área, fiscalizar e cobrar que esse trabalho seja feito. Municípios como o de Recife, copiaram o atual plano diretor de Porto Alegre e já arrecadaram imóveis. Então, ainda em dezembro, irei acompanhar uma reunião da Cagim para entender qual o problema e porque o processo está tão burocrático”, comenta Heriberto, que afirma que o MP tem o papel de fazer cumprir a lei e as destinações.
Com relação à destinação dos imóveis abandonados, o promotor destaca ainda que a finalidade social já está posta no art. 65 da Lei 13.465/2017 e o Ministério Público está procurando acompanhar a revisão do Plano Diretor de Porto Alegre e demais cidades, no sentido de que isso passe a constar nas leis municipais. “Evidentemente, é muito melhor um prédio abandonado, que é declarado como bem vago e depois passa a ser público por força do processo de arrecadação”, expõe.
Desta forma, em casos de abandono de imóveis, o papel do Ministério Público se refere muito diretamente ao direito à moradia, aos direitos difusos e coletivos, e à fiscalização e acompanhamento do plano diretor e urbanístico das cidades, para garantir que as atribuições e os direitos sejam seguidos. “A utilização desses bens para aliviar o drama da habitação popular é um dos grandes desafios, caminhos e solução porque uma vez abrigando famílias, esses imóveis não serão utilizados como ponto de reunião de tráfico de entorpecentes, depósito de lixo, vetores de doenças, entre outros”, explicita.
Na segunda semana de novembro, Heriberto Maciel ajustou, com o Procurador Geral do Município de Porto Alegre, uma visita a comissão especial que trata da arrecadação de imóveis abandonados em Porto Alegre. O intuito era verificar quantos processos estão em andamento e as razões pelas quais não se tem nenhum processo findo ainda em Porto Alegre. “Todo o imóvel em que o abandono for confirmado, pode ser arrecadado pelo poder público e a partir disso ter destinação social”, justifica.
O MP explica que, pós inquérito civil da promotoria, o município de Porto Alegre regulamentou o processo administrativo de arrecadação de imóveis abandonados por meio do decreto municipal número 19.622/2016, com alterações posteriores. “Embora o decreto de Porto Alegre tenha servido de modelo para vários municípios, pelo contato que fiz com a presidente da respectiva comissão municipal que trata do assunto, não foi finalizado nenhum processo de arrecadação de bens de imóveis abandonados”, observou o promotor Heriberto Ross Maciel.
Em setembro, a Câmara Municipal de Porto Alegre criou a Comissão Especial de Prédios Abandonados, que se encerrou três meses depois. Com a finalidade de auxiliar na análise da situação de prédios abandonados — tanto públicos quanto privados — e espaços públicos ociosos e não urbanizados, segundo nota divulgada no site oficial Câmara, a Comissão considerou as falas de representantes dos governos municipal e estadual, entidades da sociedade civil, engenheiros e arquitetos.
Em conformidade com o vereador e presidente da Comissão Luciano Marcantônio (PTB), os dados reunidos poderão contribuir para políticas mais concretas para lidar com a questão de propriedades em desuso. “Nosso objetivo foi casar o debate desta Comissão com o projeto de lei enviado pelo prefeito e aprovado pela Câmara, que possibilita permutas e alienações de áreas do Executivo. Também travamos o diálogo com a sociedade civil, para que possamos priorizar os prédios abandonados para a habitação de interesse social”, destacou.
Ainda de acordo com nota oficial, o vereador Adeli Sell (PT), relator da Comissão, afirmou que foram captados um conjunto de prédios públicos na capital que podem ter inúmeras destinações. Apontou, também, a contradição de o Executivo pagar “aluguéis caríssimos” quando existem imóveis que não estão sendo usados.
Capital — o Esqueletão
Segundo a Promotoria de Justiça, de Habitação e Defesa da Ordem Urbanística do MP-RS, a não conclusão do Esqueletão deve-se à falência da construtora. Mesmo inacabado, a construção de 17 andares está há anos ocupada por comerciantes e pessoas que não têm outro local para morar. O laudo, produzido pela instituição, constatou comprometimento grave o suficiente para risco e colapso estrutural. Após essa conclusão, o MP realizou uma ação civil pública contra o Município e contra os lojistas, buscando a interdição e desocupação do prédio por risco estrutural, além de risco de incêndio por conta de instalações elétricas precárias.
“O Município de Porto Alegre recentemente publicou decreto de desapropriação. O próximo passo será o município protocolar ação judicial de desapropriação, com depósito do valor do terreno, R$ 3 milhões para pedir a imediata desocupação. Em um segundo momento, será examinada a destinação porque levará em consideração o regime urbanístico do centro, podendo ser demolido ou até mesmo utilizado para fins sociais, que é a destinação que o Ministério Público busca para esses prédios, e que está prevista em lei”, conta o promotor.
São Leopoldo — Prédio do antigo Fórum
Uma das principais vias do Centro de São Leopoldo é a Avenida João Corrêa, que tem fluxo intenso de pedestres e veículos. O antigo Fórum de São Leopoldo, que está abandonado desde que o novo Fórum de São Leopoldo foi inaugurado há 12 anos, ocupa uma quadra inteira desta avenida.
Desde então, o prédio está tomado por lixo, deteriorado, e sem função pública, apenas trazendo riscos a sociedade. A construção de 1.571 metros quadrados, de dois andares, seria primordial para a Escola Técnica Estadual Frederico Schmidt, que fica no endereço ao lado. Porém, atualmente, vem sendo um espaço para a utilização de drogas e um caminho para saquear o colégio.
O prédio está com a fiação arrebentada, infiltrações e corrosão, aberturas demolidas, além de ter sido alvo de saques, onde metais e outros materiais que poderiam ter algum valor de venda foram levados. Um cenário marcado pelo vandalismo e pelo descaso. A 2ª Coordenadoria Regional de Educação (2ª CRE) de São Leopoldo, até ano passado era quem respondia pelo prédio. Em 2010, o local foi entregue à Secretaria Estadual de Educação para ser reformado e utilizado pela 2ª CRE e pelas escolas do entorno — as estaduais Frederico Guilherme Schmidt e Pedro Schneider, conhecido como Pedrinho.
Durante alguns anos, o plano era levar a sede da CRE para esse espaço. Até que, no ano passado, uma que reviravolta marcou o futuro do espaço. De acordo com Larri Felipe Steyer, diretor do Frederico Schmidt, quando a posse do imóvel seria passada oficialmente para a escola pela Secretaria de Educação do Estado, membros da Polícia Civil estiveram visitando o espaço.
“Vimos logo que eles (Polícia Civil) ficaram entusiasmados e já começaram a fazer uma movimentação. Então, a coordenadora da CRE na época solicitou que fizéssemos um ofício com os motivos pelos quais deveríamos ficar com o prédio. Isso foi feito, mas da mesma maneira que o edifício veio, ele foi. No final de 2018 ele foi entregue para a Secretaria de Segurança Pública, sem nenhuma explicação”, contou Larri.
Para o diretor, o espaço seria primordial para a ampliação da escola. “Atualmente, atendemos 730 alunos, nos cursos de eletromecânica e eletrotécnica, que tem duração de quatro anos. Atendemos os três turnos, mesmo assim, pelo número de salas e laboratórios, só conseguimos disponibilizar 120 vagas a cada prova seletiva anual. E temos cerca de mil e poucas inscrições, cerca de mil jovens ficam sem vaga. Em São Leopoldo, para os alunos que não possuem recurso de bancar um ensino técnico particular, somos a única opção junto com a Escola Agrícola e o Magistério do Pedrinho”, relata.
Larri afirma que a decisão de retirar o prédio da educação, diz muito sobre como Estado vem conduzindo a área. “Da mesma maneira que uma reforma teria que ser feita para nós, vai ter que ser feita para uso da Polícia Civil. O Estado vem deixando educação de lado e, infelizmente, só vemos piora. Não conseguimos mais depender dos recursos do Governo. Se hoje nossos laboratórios estão um pouco melhores, é pelas doações que ganhamos do Sindimetal, que vem sendo nosso parceiro. Mas o laboratório da eletrotécnica continua defasado. Para atendermos mais alunos e termos mais cursos, precisamos de espaço, e aquele seria fundamental”, lamenta o diretor.
No entanto, para Larri, não existe sentido ficar com a posse do prédio, se o mesmo continuar abandonado. “Para reformar é preciso muito investimento, coisa que o Estado não tem feito na educação. Não nos adianta passar e ficarmos com um elefante branco”, declara. Mas há outra preocupação: a falta de segurança em função do abandono.
“Antes não tínhamos uma separação completa, tínhamos um pedaço de muro e o resto era fechado por uma espécie de portão improvisado. Porém, por conta dos prédios serem muito próximos, isso começou a trazer problemas. Afinal, o espaço tem sido ocupado por dependentes químicos, ladrões, moradores de rua e isso causa um risco. Então, concluímos o muro. Mas o problema não acabou. As árvores, no interior da escola e na calçada, ajudam a facilitar a locomoção entre os dois prédios. Em setembro de 2019, pegaram a bicicleta de um aluno e a jogaram para o edifício abandonado. A bicicleta não estava presa, pois o aluno nem dinheiro para cadeado tinha”, denuncia o diretor.
Segundo ele, em outra ocasião, durante um dia letivo, a Brigada estava fazendo uma perseguição e o indivíduo se escondeu dentro do imóvel abandonado e os agentes precisaram entrar no local pela escola. “Imagina isso! Que risco, que perigo esse prédio causa à escola e à toda essa área importante da cidade. A João Correa é uma das avenidas mais importantes de São Leopoldo, com uma circulação enorme, e esse imóvel abandonado não tem nenhum tipo de vigilância. Estamos à mercê do perigo. Convivemos com a insegurança. O local oferece risco, e é o reflexo do abandono no qual vivemos”, completa o diretor da Escola Técnica Estadual Frederico Guilherme Schmidt.
Secretaria de Segurança ainda não sabe como o prédio será usado
De acordo com a Secretaria de Segurança Pública (SSP), o terreno do antigo Fórum de São Leopoldo foi repassado para a SSP para uso da Polícia Civil, como consta no Diário Oficial do Estado, no dia 08 de novembro de 2019. “Quanto aos custos de obras, a Polícia Civil ainda estuda a melhor maneira de utilizar o espaço, porém ainda sem uma definição concreta, por se tratar de um espaço que foi cedido recentemente e são necessárias avaliações estruturais”, diz o comunicado oficial.
A 2ª Coordenadoria Regional de Educação (2ª CRE) de São Leopoldo não respondeu ao nosso pedido de entrevista até a conclusão da reportagem. A Secretaria Estadual da Educação (Seduc) informou apenas que não há um histórico preciso de destinação do prédio.
Déficit Habitacional
O primeiro item que compõe a definição, habitações precárias, possui dois subcomponentes: os domicílios rústicos e os domicílios improvisados. Os rústicos são aqueles sem paredes de alvenaria ou madeira aparelhada, enquanto os improvisados representam os locais e imóveis sem fins residenciais que servem como moradia alternativa.
Também composta por dois subcomponentes, a coabitação familiar equivale aos cômodos e as famílias conviventes secundárias que desejam constituir novo domicílio.
O terceiro componente é o ônus excessivo com aluguel urbano, relacionado às famílias com renda de até três salários mínimos que moram em domicílios urbanos duráveis e que despendem mais de 30% de sua renda com aluguel. O último componente, o adensamento excessivo em domicílios alugados, indica os domicílios alugados com um número médio superior a três moradores por dormitório.
Marilene Maia: a gestão do ‘público’
Marilene Maia é coordenadora do Observatório da realidade e das políticas públicas do Vale do Rio dos Sinos, o ObservaSinos, que é um programa do Instituto Humanitas Unisinos (IHU), vinculado ao Centro de Cidadania e Ação Social (CCIAS). Ambos pertencentes a Universidade do Vale do Rio dos Sinos, a Unisinos.
Um dos principais objetivos do ObservaSinos é contribuir com o serviço público e sua atuação, através da realização de pesquisa, análise de dados, produção de artigos e formações, que detalham a realidade dos quatorze municípios pertencentes ao Vale do Sinos. Ele envolve a produção de matérias, artigos e estudos sobre todas as principais áreas, como econômica, mercado de trabalho, saúde, segurança pública, acesso à moradia e direitos sociais. O que o torna uma referência quando o assunto é o debate de políticas públicas e as falhas do poder público com a população.
Para Marilene, que é a doutora em Serviço Social, é importante que a sociedade reflita mais amplamente sobre o sentido do termo ‘público’. “Quando pensamos nos prédios públicos abandonados, associamos o Estado como o grande gestor da vida societária. Mas olhando a partir de (Antonio) Gramsci, o dono do Estado é a sociedade, só que a sociedade tem o entendimento de que quem é dono do Estado são os governos ou os gestores dos poderes”, explica a professora, salientando o quanto isso perpassa para a construção de uma cultura brasileira de não se coloca como portadora do poder de pensar a cidade como um todo. “Estado e sociedade têm uma distância que é preciso ser enfrentada”.
O planejamento do que é público passa pelas escolhas de um gestor que, como explica Marilene, possui uma visão política, ideológica ou administrativa, mas poucas vezes olha para a cidade com um olhar técnico. “Seria necessário que fosse questionado: qual a viabilidade desse prédio; para onde que vai; qual é o serviço que deixou de acontecer; que a gente tem de demandas…”, propõe.
Em sua visão, o descaso com imóveis abandonados também está relacionado ao fato da população não ter conhecimento sobre o que é público em sua cidade. “Os prédios públicos possuem um papel muito emblemático. Talvez eles fossem um instrumento muito potente para poder dar vistas ao não-trato e ao maltrato das coisas públicas, tanto pelo Estado quanto pela sociedade”, fala. Levando em conta que os prédios públicos deveriam servir para todos os cidadãos, cumprindo seu papel de algo ‘público’, como por ela colocado, Marilene expressa que os ambientes em desuso da cidade tornam o cenário crítico ao deixarem de exercer a sua função perante a população.
“Aí vemos que, quando um prédio público abandonado é ocupado por moradores que não tem um teto, quem é culpalizado por essa condição de acesso é a população que ocupa o prédio”, aponta Marilene. Esse movimento ao qual é comum observar, conforme discorre a professora, é o que precisa impulsionar o debate dentro da sociedade sobre o que é o público e o que, de fato, é público no local onde estamos.
Para estabelecer um diálogo, Marilene ressalta que é preciso abrir espaço para que as relações sejam mais reais. “Culturalmente, nossa sociedade tem relações estabelecidas de forma vertical. Mas aí nós, cidadãos, ficamos muito pequenos diante de um prédio desocupado, pois não sabemos exatamente onde recorrer. Porque o que parece, é que esse ente Estado é invisível, mas não, ele é visível”, completa.
Movimento de Luta nos Bairros: imóveis desocupados, população ocupante
O Movimento de Lutas nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), foi a organização líder da Ocupação Lanceiros Negros em Porto Alegre. O MLB existe há quase 18 anos, tem atuação nacional e tem como objetivo militar sobre a causa da habitação popular. Na coordenação da agremiação no Rio Grande do Sul, está a nutricionista Priscila Voigt, 28 anos, que também compõem a coordenação nacional do movimento.
“Iniciei minha trajetória no movimento a partir de 2014. Como minha formação profissional foi em saúde coletiva, sempre tive muito presente que a luta por moradia digna tem relação direta com a saúde da população. Ter moradia digna, saneamento básico, acesso regular à água além da posse e o acesso à terra, à cultura e lazer, e aos serviços de saúde, são fatores determinantes na condição de saúde de toda uma coletividade. Assim conheci o MLB, a partir de um convite para participar do 4º Congresso Nacional do movimento, realizado em São Bernardo dos Campos, São Paulo. Na volta do congresso assumi então, junto a outros camaradas, a importante tarefa de construir o movimento no Rio Grande do Sul”, conta Priscila.
O MLB é um movimento que defende e organiza a população sem teto do país para lutar pelo direito humano de morar dignamente, pelo direito à cidade e pela reforma urbana e tem como motor principal dessa luta as ocupações urbanas, de imóveis e terrenos abandonados que não estão cumprindo a função social da propriedade, como estabelecido no Estatuto das Cidades.
“São imóveis que seguem vazios por anos, servindo à especulação imobiliária. Inclusive, muitas vezes esses imóveis, quando são públicos, acabam servindo como uma moeda de troca de governos com os grandes empresários, que financiam suas campanhas e se abocanham dos bens públicos que deveriam servir para políticas públicas como a política de habitação, expressa na Constituição como um direito humano que deveria ser garantido pelo Estado. Assim, o movimento com as ocupações urbanas luta para garantir um direito constitucional que infelizmente não vem sendo cumprido pelo estado brasileiro”, informa.
Em 2015, o MLB Rio Grande do Sul, organizou a ocupação Lanceiros Negros junto a famílias que estavam vivendo de aluguel sem conseguir arcar com os custos de vida. “Eles tinham que escolher entre colocar comida na mesa ou pagar o aluguel. Além deles, estavam junto na ocupação famílias despejadas de seus lares pelo poder público, famílias morando em situação de coabitação, em áreas de risco, vítimas das enchentes que todo ano assola nossa cidade. No dia 14 de novembro, dia que marca o cruel assassinato efetuado pela burguesia gaúcha dos lanceiros negros, negros que lutaram na Revolta Farroupilha em troca de sua liberdade, ocupamos com cerca de 70 famílias um prédio do estado localizado entre as ruas General Câmara e Andrade Neves, prédio esse abandonado há mais de uma década”, detalha Priscila.
De acordo com a coordenadora do MLB RS, a primeira ação do estado foi mandar a Brigada Militar ao local. “A conduta deveria ser ouvir a demanda daquela comunidade a partir de representantes da política de habitação da cidade e do estado. No entanto, o direito à moradia vem sendo tratado como questão de polícia, e a única política do poder público é o despejo forçado, que joga todos os anos milhares de famílias na rua, passando inclusive a compor o contingente da população em situação de rua. O prédio da Lanceiros Negros quando ocupamos estava jogado às traças e aos ratos, em depredação. Dinheiro público dos nossos impostos sendo jogado no lixo. Ao entrar no prédio, iniciamos a limpeza e as reformas necessárias para vivermos lá dignamente. Recebemos muito apoio da vizinhança, movimentos sociais, sindicatos, pessoas identificadas e solidárias à luta”, relata.
De acordo com a militante, houve várias tentativas de reintegração da posse, e uma delas foi favorável às famílias que estavam ocupando o lugar. “Mas infelizmente, após um ano dessa vitória, no dia 12 de junho de 2017, ocorreu uma grave violação dos direitos humanos com a violenta reintegração de posse do prédio da Lanceiros Negros. As crianças passaram mal com tanto gás de pimenta e bomba de gás lacrimogêneo usado pela Brigada Militar, as famílias foram humilhadas, perderam seus pertences e foram jogadas na rua em uma das noites mais frias do inverno gaúcho. É dessa forma que o Estado age nas ocupações e como age com o povo que se levanta e luta”, discursa com indignação.
O artigo 6º da Constituição Federal fala dos direitos sociais, e estes incluem a educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados.
“Em 2001, depois de intensa mobilização social, foi aprovada também a lei 10.257, mais conhecida como “Estatuto da Cidade”, que regulamenta as políticas urbanas e prevê uma série de instrumentos, como o Plano Diretor e a cobrança do IPTU progressivo, que visam combater a especulação imobiliária e regularizar a propriedade da terra. No entanto, essa lei praticamente não é aplicada nas cidades brasileiras, graças à força do capital imobiliário e dos grandes proprietários. De acordo com o Programa Habitat, da ONU, 52,3 milhões de brasileiros, cerca de 28% da população, vivem nas 16.433 favelas cadastradas no país, número que chegará a 55 milhões de pessoas em 2020. Se somarmos a isso os moradores de cortiços, ocupações e os moradores de rua, o total chega a 36,6% da população. E dados divulgados pela Síntese de Indicadores Sociais (SIS), elaborada pelo IBGE, em 2018, apontam que 35,9% da população não possui acesso à rede de esgoto e 15,1% não recebem abastecimento de água. Ao todo, 5,4 milhões de brasileiros não têm banheiro. Tudo isso em pleno século 21”, informa Priscila.
De acordo com o Movimento de Lutas nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB), atualmente, existem no Brasil mais de 6 milhões de domicílios vazios, número próximo ao déficit habitacional quantitativo, que é de 7,77 milhões de famílias.
“Mesmo que parte desses imóveis precisassem passar por reforma antes de serem destinados a moradia popular, seria possível, pelo menos, reduzir consideravelmente o número de famílias sem-teto no país. O direito à moradia, entretanto, não pode ser entendido apenas como sinônimo de casa própria. A reforma urbana que queremos também prevê o controle rigoroso dos aluguéis e o estabelecimento de uma política séria e duradoura de aluguel social para diminuir o déficit habitacional — como já ocorre em outros países, onde o governo aluga ou oferece gratuitamente imóveis residenciais para a população pobre”, defende a coordenadora do MLB RS, Priscila Voigt.
Ainda segundo o MLB, os últimos dados disponíveis sobre o déficit habitacional de Porto Alegre, por exemplo, são de 2009, ou seja, dados de 10 anos atrás, produzidos pelo Centro de Direitos Econômicos e Sociais (CDES). “O déficit era de 53 mil unidades habitacionais, o que traduzindo para famílias, chega-se à cifra média de 280 mil pessoas. Estimativas mais recentes, realizadas pela mesma organização, em 2016, indicam que este número chega a 75 mil unidades habitacionais. Ainda de acordo com o Mapa da Irregularidade Fundiária, feito pelo Demhab (POA) em 2009 havia 484 núcleos e vilas irregulares em Porto Alegre, totalizando mais de 75 mil domicílios, onde moram quase 300 mil habitantes”, completa Priscila.
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