O que foi a Revolta dos Malês, a maior rebelião de escravizados do Brasil

Crédito,Domínio Público
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- Author,Edison Veiga
- Role,De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil
Em 1835, havia 65 mil pessoas morando em Salvador, antiga capital do Brasil Colônia que ainda gozava de prestígio econômico naqueles primeiros anos de país independente. Deste contingente, 40% eram escravizados. Dos escravizados, 63% eram nascidos em solo africano.
Estes dados, trazidos pelo historiador João José Reis em seu livro Rebelião Escrava no Brasil – A História do Levante dos Malês (1835) (Editora Brasiliense, 1986), dá a dimensão do que representava o regime escravocrata para a sociedade brasileira. E também mostra como o chamado tráfico negreiro seguia intenso naquele período.
Mais que isto, os dados do pesquisador, professor na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e autoridade mundial sobre o tema da escravidão negra, ajudam a compreender o cenário que propiciou a ocorrência, na capital baiana, do hoje reconhecido como maior levante de escravizados da história do Brasil: a Revolta do Malês, episódio histórico que ocorreu na noite do dia 24 de janeiro de 1835.
“Um levante que, podemos dizer, não foi bem-sucedido porque foi descoberto antes, mas causou um tumulto na cidade de Salvador, abalando a certeza de que as vigilâncias senhorial, provincial e imperial tinham controle total sobre essa população”, pontua à BBC News Brasil a historiadora Luciana Brito, professora na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e autora do livro O Avesso da Raça (Editora Bazar do Tempo, 2023).
Brito salienta que a rebelião impactou “a estrutura das autoridades locais”, destruindo a ideia de que “se tinha controle quase que total sobre as revoltas”.
“Do ponto de vista militar e político, a revolta não foi bem sucedida, porque foi esmagada pelas forças de segurança”, diz à BBC News Brasil o advogado Flávio de Leão Barros Pereira, professor de Direitos Humanos da Universidade Presbiteriana Mackenzie. “Eles não conseguiram tomar a cidade nem abolir a escravidão. Mas o impacto foi profundo na visibilidade, na repercussão do problema da escravidão e também do endurecimento do controle social sobre os africanos, a vigilância e a opressão sobre práticas religiosas islâmicas.”
Insurreição islâmica
De acordo com cálculos de historiadores, pelo menos 73 participantes da rebelião foram mortos — e mais de 500 presos. Considerando que foram cerca de 600 os participantes, é possível cravar que a rebelião foi completamente anulada pelas autoridades. Entre os insurgentes havia escravizados e também libertos.
É difícil precisar quantas revoltas de escravizados houve no Brasil, mas estudos contemporâneos costumam apontar para um número próximo de 45. “Acredito que tenham sido mais”, comenta à BBC News Brasil o jornalista e pesquisador Guilherme Soares Dias, fundador do Guia Negro. “Só na Bahia foram cerca de 30, muitas delas nessa mesma década. A dos Malês é a maior que se tem notícia.”
“Há um consenso em se considerar este o maior levante de escravizados da história do Brasil”, afirma à BBC News Brasil o historiador Petrônio Domingues, professor na Universidade Federal de Sergipe (UFS) e coautor do livro Diásporas Imaginadas: Atlântico Negro e Histórias Afro-brasileiras (Editora Perspectiva, 2020).
“Sabemos que os portugueses sempre tentaram abafar essa revoltas e fazer com que as notícias não chegassem a outros lugares, justamente para evitar que elas acontecessem. Essa documentação é muito precária, há muito pouco material para comprovar o tamanho dessas revoltas e o número delas”, acrescenta o pesquisador Dias.
Um aspecto interessante do levante malês é o fato de ele ter, em essência, uma base religiosa islâmica. “Não há sombra de dúvida sobre o papel central desempenhado pelos muçulmanos na rebelião de 1835”, escreve Reis. “Os rebeldes foram para as ruas com roupas só usadas na Bahia pelos adeptos do islã. No corpo dos que morreram, a polícia encontrou amuletos muçulmanos e papéis com rezas e passagens do Alcorão.”
A palavra “malê” evoca isso. Derivada do idioma iorubá, ela significa justamente muçulmano. Dias lembra que esses africanos muçulmanos que foram trazidos para Salvador tinham em comum o fato de que em geral “eram pessoas que sabiam ler e escrever” e acumulavam “um passado de luta”. Ele frisa ainda que muitos eram “de posições importantes” na África, o que os deixava em situação ainda mais “ultrajante” sob o jugo da escravidão.
“É importante a gente pensar que, tendo sido os Malês a principal e maior revolta de escravizados urbanos das Américas, foi a única comandada por islamizados”, contextualiza à BBC News Brasil a historiadora Maria Helena Pereira Toledo Machado, professora na Universidade de São Paulo (USP) e autora do livro O Plano e O Pânico: Os Movimentos Sociais na Década da Abolição (Editora Edusp, 1994).

Crédito,Guilherme Soares Dias/ Guia Negro
Machado ressalta, contudo, que ao contrário do que possa parecer à primeira vista, o movimento não foi uma jihad, ou seja, uma “guerra santa” de motivação islâmica. A religião acabou sendo um ponto de união e de convergência comunitária dos africanos. “O islã foi o cimento unificador dos revoltosos”, define a historiadora Brito.
“Foi uma revolta de escravizados também ligada à obtenção da liberdade”, afirma a historiadora Machado.
De acordo com Barros Pereira, os malês também estava sufocados pelo “enrijecimento do controle” sobre suas práticas religiosas no Brasil. “Inclusive repressão clara”, pontua.
Resgatar Bilal
O gatilho, de qualquer forma, foi a prisão de um líder religioso islâmico: Pacífico Licutan (?-1835), conhecido como Bilal — em alusão ao profeta muçulmano Bilal Ibne Rabá (581-642) — era um enrolador de tabaco escravizado, cujo proprietário era um médico, que vivia em Salvador.
Por conta do seu papel proeminente na comunidade islâmica formada por parte dos escravizados da cidade — em geral, de etnias nagô e hauçá —, por vezes companheiros vinham tentando comprá-lo para libertá-lo. Sempre sem sucesso.
O médico que era oficialmente seu dono morreu em 1834. Como havia dívidas dele para serem quitadas, as autoridades decidiram apreender Licutan — a ideia era vendê-lo e, assim, pagar os credores.
Mas chegou o Ramadã, mês sagrado do islamismo. E essa situação deixou os seguidores da religião revoltados em Salvador. Passaram a tramar uma rebelião, que se iniciaria com a libertação do líder religioso.
A ideia deles era fazer uma rebelião no dia 25 de janeiro, um domingo, ainda pela manhã, aproveitando o horário da missa na Igreja do Nosso Senhor do Bonfim, que deixaria o centro da cidade mais vazio. Naquele horário, os escravizados deveriam buscar água nas fontes públicas, o que facilitaria a reunião dos mesmos.
Eles planejavam incendiar diversos pontos da cidade, distraindo os policiais. E então iriam resgatar Licutan, que estava detido no subsolo do prédio da Câmara.
Dedo-duro
A trama começou a dar errado porque a prefeitura da cidade recebeu, na véspera, uma denúncia anônima sobre o plano. O chefe de polícia foi acionado e determinou que patrulhas fossem realizadas em todos os bairros de Salvador, com a detenção de qualquer suspeito.
Hoje se sabe que a denunciante foi uma africana liberta nagô chamada Sabina da Cruz (?-1875). A maior estudiosa da personagem é a historiadora Luciana Brito. “Seu intento inicial era impedir que o marido participasse do levante. Ela denunciou porque queria evitar de toda maneira que ele participasse. Sabia que seriam grandes as chances deles serem descobertos, já que não havia nenhuma referência de levante [perpetrado por escravizados] com sucesso”, afirma ela.
“Além da delação, as armas dos revoltosos eram mais rudimentares. Do ponto de vista bélico, eles estavam em desvantagem”, lembra o historiador Domingues.
Acuado pelas autoridades, um grupo de cerca de 60 homens precipitou então uma tentativa de levante. Ele chegaram a atacar policiais e rumaram juntos ao prédio da Câmara.
Não deu certo e os policiais conseguiram deter o grupo, controlando a situação.
Batalhas pipocaram em diversos pontos de Salvador. Com uma intensa repressão, em cerca de 24 horas todos os focos foram dispersos e os rebelados, mortos ou detidos.
Segundo o livro de Reis, 16 envolvidos ainda foram condenados à morte. Destes, apenas quatro foram de fato executados — no Campo da Pólvora, por um pelotão de fuzilamento, em 14 de maio daquele ano. A grande maioria dos que foram detidos acabaram condenados a açoitamento — de 300 a 1,2 mil chibatadas (aplicadas gradualmente ao longo de vários dias), conforme o caso.
“A revolta não atingiu seu objetivo mas deixou seu legado: um legado de organização de luta, de sonhos pela liberdade”, comenta o pesquisador Dias.
Uma Salvador muçulmana
Não há um consenso entre os especialistas sobre os objetivos mais amplos da revolta. Acredita-se que o grupo pretendia, depois de revoltas generalizadas, conseguir não só libertar o líder religioso muçulmanos como também derrubar o governo de Salvador e instituir ali uma administração malê.
“Chama a atenção o fato de ter sido liderada por libertos muçulmanos, uma operação planejada e com objetivos bem definidos”, comenta Brito.
“Foi inovador o fato de eles estarem organizados em torno de uma cultura religiosa completamente alheia ao Brasil escravista, que era a religião muçulmana”, contextualiza ela. “Nesse período [no Brasil] não se entendia a língua árabe, os códigos, os planos, as estratégias de articulação, a mística e o signo dessa religião.”
“Eles resguardaram a sua cultura religiosa como estratégia de articulação política contra o regime escravista”, salienta a historiadora.
De acordo com os relatos escritos pelos próprios participantes, entendia-se que o conflito era uma guerra dos “da terra de negro” contra os “da terra de branco”. Em última instância, os insurgentes pretendiam matar todos os que não fossem “da terra de negro” ou se recusassem a lutar a favor da causa dos malês.
“Eles se insurgiram contra o sistema escravista e a imposição do cristianismo. Queriam a conquista da liberdade e a derrubada do sistema escravista”, argumenta Domingues. “A causa principal foi a opressão do sistema escravista […] e toda a desumanidade que o sistema escravista impunha. Em menor escala, outro fator foi o da intolerância religiosa.”
Brito lembra que outra importância do episódio foi a alta participação de mulheres. Além do papel de Sabina da Cruz, ela diz que são muitos os relatos do envolvimento feminino, ainda que, “na documentação, apareçam de forma secundária”. “Elas tiveram um papel fundamental na organização das mobilizações, com reuniões em suas casas. Elas sabiam o que estava acontecendo, guardavam armas e escritos em árabe. Tinham participação ativa nas decisões”, explica.
Altar fake
Seja tendo a religião como elemento de coesão social, seja sonhando com ideais de liberdade, seja por todos terem origens semelhantes, havia já uma organização comunitária dos africanos e afrobrasileiros em Salvador que antecedia à insurreição. E isso foi importante para planejá-la.
“Entre eles, havia uma capacidade organizacional marcante. Muitos eram letrados e mantinham uma comunicação por meio de bilhetes em árabe, orações, reuniões… Criaram uma rede social muito importante”, analisa Barros Pereira.
Domingues também atenta para essa organização. “Houve planejamento”, frisa ele, lembrando que foram feitas reuniões e realizados fundos para aquisição de armas.
O pesquisador Dias cita, por exemplo, a Sociedade Protetora dos Desvalidos, uma caixa de auxílio mútuo criada por eles. Foi fundada em 1827. “Em 1832, eles compraram uma sede no meio do Pelourinho. Foi fundado por malês. Eles eram vendedores ambulantes e fingiam ser uma entidade católica”, explica.

Crédito,Benjamin Robert Mulock/ Domínio Público
Fazia isso para ter o direito “de existir”, salienta o pesquisador. “Era uma entidade religiosa fake. Tinha até um altar católico, mas atrás ficavam símbolos das religiões afrobrasileiras e também dos malês, da religião muçulmana.”
Segundo Dias, ali foi esconderijo de malês que participaram da revolta. “O último andar tinha uma biblioteca fake. Atrás dela, na verdade, ficava uma escada que dava acesso a esse lugar [o refúgio secreto]”, conta.
Legado
Resgatar tais episódios, na opinião dos especialistas, é importante para que a narrativa historiográfica não perpetue uma ideia de que a abolição foi um processo protagonizado por brancos, com o direito à liberdade sendo outorgado aos negros. “Foi um processo longo, fruto de revoltas e outras formas de resistência”, ressalta Brito.
“O levante dos malês mostra essas pessoas como sujeitos políticos, com ideias de liberdade, projetos de vida. Até mesmo a Sabina, que era contra o levante, também mostra que havia diversidade de pensamento”, acrescenta a professora.
“É fundamental conhecer a história das revoltas [dos escravizados] para entendermos que não foi como aprendemos na escola, que as pessoas negras não aceitavam a escravização de forma pacífica. Sempre lutaram para acabar com ela”, destaca Dias.
Insurreição islâmica
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