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Musicante Sudoeste: a educação escolar e a produção de necessidades estéticas na juventude para além do imediatismo do cotidiano

No dia 31 de outubro tive a alegria de participar, como expectador, do quarto Festival de Música do Sudoeste Baiano, o Musicante. O festival reúne jovens compositores, compositoras, cantoras e cantores estudantes das escolas Estaduais do Núcleo Territorial de Educação do sudoeste da Bahia (NTE – 20).
O sucesso do evento se deve muito a organização e metodologia. Há um processo de seleção local, regional até chegar aos 15 finalistas. Trata-se um projeto coletivo que envolve estudantes, docentes, funcionários, músicos, oficineiros, pais, comunidades que se articulam para a realização de um trabalho que visa a “construir uma cultura musical, uma agenda artística na escola e nas cidades do sertão baiano”, como disse a professora Monique Alves Brito, da comissão organizadora do evento.
A fala da professora Monique se fez realidade na qualidade das composições, na segurança e desenvoltura dos finalistas, bem como na vibração do público ao ouvir canções que nos tiravam do lugar comum. Essas meninas e meninos trataram de questões muito sensíveis na atualidade como os problemas ambientais e a necessidade de uma nova postura diante de sua destruição: “perdi o meu lar, o meu lugar, a água me levou não sei quem eu sou, até minha identidade a água carregou”, assim cantaram Taiane rodrigues e Ismael Victor. Foram defendidas Canções que tomavam os povos indígenas como tema. A composição “Filhos do Sol” de Maria Clara Oliveira e Victor Gabriel Nunes, do Colégio Estadual Roberto Santos da cidade de Poções, nos convidava a entrar na cosmovisão dos povos originários: “No olho do lado dos filhos do sol se desdobra a beleza do que se há de vir”. Além dos temas do sertão, da mulher sertaneja, das esperanças da juventude, do engajamento juvenil para transformar o mundo, de questões existenciais como a solidão, a saudade.
Toda essa explosão de criatividade foi resultado de processos criativos de estudantes estimulados e estimuladas por um projeto educativo escolar!
Vigotski ao tratar da escola entende que o ensino não é o coroamento do desenvolvimento. O ensino é o início do processo de desenvolvimento. Desse modo, o papel da educação é de satisfazer e criar necessidades novas, as quais devem ir além da imediaticidade da vida prática e cotidiana possibilitando aos educandos uma ampliação da sua leitura e concepção de mundo numa perspectiva de totalidade, de compreensão das contradições e da complexidade daquilo que se apresenta muitas vezes como simples. Penso ser algo muito próximo do que canta Belchior ao dizer, na canção “primeira grandeza”: “Quando eu estou sob as luzes não tenho medo de nada. E a face oculta da Lua que era minha, aparece iluminada”.
Ainda sobre a importância da escola, o professor Dermeval Saviani afirmou em determinada ocasião que “O papel da escola não é mostrar a face visível da lua, isto é, reiterar o cotidiano, mas mostrar a face oculta, ou seja, revelar os aspectos essenciais das relações sociais que se ocultam sob os fenômenos que se mostram a nossa percepção imediata.”
Posso dizer que vi, junto com as/os artistas-estudantes, o público e a produção do festival, a face oculta da lua naquelas canções e interpretações.
Tomando a especificidade do que aconteceu no dia do festival e em todo o seu processo, entendo que foi uma significativa experiência de possibilidade efetiva de realização do trabalho educativo para o desenvolvimento de sentidos estéticos que aprofundem o olhar sobre as formas e os conteúdos da realidade social, natural, política, econômica da sociedade dando forma poética, melódica, rítmica e harmônica ao que foi atentado e percebido por esses adolescentes.
Experiências como essas, somadas a uma política educacional que vise a transformar o que é extraordinário em ordinário, em algo presente nas escolas públicas brasileiras, com condições efetivas para o desenvolvimento da educação no dia a dia escolar, que valorize o trabalho docente, a máxima apropriação dos conhecimentos artísticos, científicos, filosóficos e da cultura corporal seriam possibilidades para fazer avançar nossa educação e o interesse dos estudantes pelo estudo e pelas transformações da sociedade.
A música campeã dessa edição foi a “Náusea Latina”, de autoria de Jonathá Almeida, estudante do Colégio Estadual Isaías Alves, da cidade de Poções. O nome forte e impactante do título faz jus a leitura crítica da realidade com uma melodia e rítmica muito bem arranjada pela banda e coroada por uma interpretação que abria espaço para vocalizes de inspiração árabe. Maravilhoso! O mal estar, a náusea diante de uma América Latina “de sangue na boca que não quer se acabar” tocou o público e os jurados. As angústias e esperanças da juventude, e da juventude negra em especial, como Jonathán reconheceu ao falar sobre o que o inspirou a compor essa canção, ficou patente quando afirmou: “a dor de um soco dado há muito tempo e que ainda dói”…
“Eu quero é trabalhar, viver por aqui, morrer por você. Eu quero é trabalhar, viver por aqui, morrer por você. Eu tenho vozes na cabeça que me fazem acreditar que o surto do terceiro mundo é bem maior”. Essa letra está na minha cabeça, me fazendo pensar a partir da criação, do olhar de um jovem de 16 anos que assim como todos os finalistas do musicante, levaram o público à loucura.
Sucesso e vida longa ao Musicante, esse importante instrumento na travessia para formas mais ricas e bonitas do viver.
Cláudio é Professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia e Músico.