O litro, o quilo e as conversas do fim do mundo

Quem veio primeiro, o litro ou o quilo? Pelo que sei (posso até estar errado), o litro na forma de medida, mesmo antes de Cristo na civilização da Mesopotâmia. Na era primitiva, funcionava o escambo, ou troca de mercadorias, inclusive por serviços, o que perdura até hoje na modalidade da moeda como espécie de compra e venda.
Nas feiras de antigamente, nas cidades do interior, lembro ainda menino, e não é coisa de velho, os mantimentos (farinha, feijão, milho, arroz), frutas e outras coisas mais eram vendidos na base do litro e da unidade. Só as carnes eram no quilo. Recordo bem do meu pai vendendo farinha nas medidas de cedro de cinco, três, dois e até um litro. Hoje tem até comida a quilo.
Os feirantes proseavam alegres nos encontros de compadres e comadres sobre os tempos de chuvas e secas, notícias de parentes de São Paulo, vizinhos e até moças que fugiam de casa com seus namorados. Diziam que o cara roubou a virgem donzela.
Existiam histórias de coronéis, gente valente, de vaqueiros destemidos nos espinhos do agreste sertão da caatinga e causos de pescador e caçador. Tinha-se mais calor humano. E quando se recebia uma carta pelos correios, era aquela felicidade! Saia-se mostrando para os amigos e parentes. Era até motivo de festa.
Nos tempos atuais, tudo é na base do quilo, desde nossa saborosa e vigorosa banana, até a manga, a maçã, o mamão e todos legumes. Só está faltando vender as folhas (alface, rúcula, coentro, salsa) no peso. Até o papo é no quilo, porque ninguém atura mais ouvir o outro por muito tempo, pois pode ser taxado de chato. No máximo 50 ou 100 gramas de prosa.
O pior de tudo é que ninguém sabe como está a balança. No Brasil dos falsários e golpistas, não dá para confiar na fiscalização dos órgãos do poder público (precária e até corrupta) e nem nos comerciantes, muitos gananciosos e inescrupulosos. Nem sabemos quando estamos sendo roubados. Nos supermercados, os líquidos não estão completos.
E aí alguém diz: São coisas dos tempos antigos. O progresso trouxe mudanças. Será que para melhor? Só se for para eles, os abonados e aqueles que, de tanto viverem em disparada na corrida pelo dinheiro, acham tudo normal. Nem percebem que estamos desumanizados.
Porém, este é outro assunto sociológico e filosófico mais profundo para se discutir. A conversa aqui mesmo é sobre o litro, o quilo e os papos agradáveis e cordiais dos compadres e comadres. Naquela época não era cafona as crianças e jovens respeitarem os pais e até darem benção aos mais velhos quando se cruzavam no campo e nas ruas das cidades. As pessoas eram bem mais humanas e quase não se ouvia notícias de violências bárbaras.
Será que estou sendo romântico e nostálgico demais? Nas cidades, principalmente no final da tarde, homens e mulheres colocavam as cadeiras no passeio, na porta de suas casas, para vários dedos de prosa, sem pressa. Hoje não se faz mais isso, e o contato com o vizinho é coisa rara. Nas grandes metrópoles, mal se conhecem.
Havia aquela conversa de pé de orelha ou de ouvido quando era um segredo que logo se tornava público pelo fofoqueiro ou fofoqueira, que passava o dia na janela vendo o movimento. E as conversas dos anciões, carregadas de sabedoria e cultura sobre a vida! Eles atualmente são raramente consultados porque são vistos como imprestáveis e caducos, lelés da cuca.
– Oh cumpade, cadê Nô de Dina?
-Ah cumpade, não sabe não? A fogosa da mulher fugiu com outro e de desgosto ele sumiu pra San Palo. Também não dava no coro!
– E aquela morena da filha das ancas aprumadas?
– Ficou mal falada, cumpade! Puxou a mãe e anda por aí regaterando com todo mundo. Tá amasiada com um cara lá do Norte, cabra meio esquisito com jeito de pistolero.
– É cumpade, coisa de fim do mundo. A terra é só sequidão. Só se ver gente descendo de pau-de-arara. Virou formiguêro. As lavouras se acabando e o gado berrando na cacimba. Os moços de hoje só quere saber de bater perna nas cidades.
As conversas entre as comadres eram mais coisa de mulheres, das intimidades do sexo, o tabu da época. Era até pecado falar nisso em público. Os homens não tomavam parte. Hoje existe uma abertura em pé de igualdade e, nessa questão, foi um grande avanço. Elas estão inseridas no mercado e em postos de decisões.
No entanto, em se tratando de litro e quilo, está todo mundo embolado e nivelado na mesma muvuca da desumanização, da barbaridade, da falta de respeito para com o outro, do consumismo, da falta de leitura e cultura, do egoísmo e do individualismo. Todos de celular na mão só estão de olho no dinheiro, e nem olham para o nível da balança nos restaurantes.
Até a inteligência e o conhecimento são classificados na base do quilo, mesmo assim desvalorizados e não muito levados em conta. Aliás, um quilo de ignorância, de extremismo, de intolerância e ódio está valendo mais que um de saber e estudo. Um quilo de corrupto e bandidagem vale mais que um de honestidade e caráter. O litro é coisa do passado, tenho até um em meu espaço cultural como peça de museu.